Depois destas discussões que por cá têm passado, apetece encolher os ombros e pensar como a igualdade e a democracia, dogmatizadas, destroem mais do que constroem. O Pedro Arroja, mau grado algum exagero na palavra, acentua, na citação que o Ary coloca, um problema real: a democracia assenta numa nivelação artificial de todos os sujeitos. Não há como não nos rendermos a esta evidência. Sem estruturas de controlo, é um modelo que está condenado a abanar ao sabor da maré, profundamente desresponsabilizante (é a maioria que decide, nunca a própria pessoa) e à mercê de poderes paralelos que consigam manipular o voto (pela nossa tão querida sociedade de informação). Não sei onde o Arroja quer chegar, mas, cá por mim, é uma evidência que nenhuma sociedade é saudável caso esteja, toda ela, sujeita a um procedimento de decisão democrático. Em especial, o nosso tão caro Estado de Direito: pensemos no poder judicial, na sua forma de legitimação (e nem se diga que a sua legitimidade radica, exclusivamente, na sujeição à lei: ou então não se explicam, desde logo, conceitos relativamente indeterminados, abuso direito, ...).
Na Revolução Françesa, desconstruiu-se toda a sociedade anterior e ergueu-se uma 'nova' com os seus destroços. O resultado foi um super-poderoso poder administrativo muito mais fortalecido do que o anterior, de Luís XVI. Em nome da democracia, da igualdade; em nome da maioria.
Convém ter um bocadinho de freio antes de exarcebar a defesa da democracia: é um procedimento de legitimação particularmente frágil. E o Arroja chama a atenção para isso.
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A nossa contradição é gritante: defende-se a democracia enquanto, simultaneamente, se desbasta todo o sistema político e todos os meios de informação. Alguma coisa falhará, certamente.
39 comentários:
Oh tiago, podias, em vez de criar um post novo, responder ao anterior, facilitava a leitura e a discussão... :D
Pensei nisso, de facto :P mas fiz assim porque é espécie de súmula do que pensei ao ler os comentários aos posts anteriores ;)
"mau grado algum exagero na palavra" é uma adjectivação que não corresponde à realidade, se me permites discordar em absoluto do que dizes, Tiago. E discordo em muito do que escreves neste post em particular.
Agora não tenho tempo nem disponibilidade para argumentar sobre o que se tem vindo a discutir aqui. Mas se vier a ter, prometo fazê-lo com mais substância do que aquela com que faço agora.
Concordo com a síntese. As sociedades não vivem de processos de legitimação únicos e a democracia é apenas um deles, talvez o mais importante, talvez um dos mais importantes.
Mas o que dizes não é nada que eu não tenha dito. Se calhar retiramos é coisas diferentes da frase do Arroja, da-mos-lhe uma extensão diferente. Eu acho que ele no fundo quer abrir caminho para um sistema autoritário, tu achas que ele constata uma falha clássica da democracia.
Sim, embora seja pela conclusão que se adere ou não à posição do Arroja.
Claro. Como a todas posições assentes em valores.
Não sei se ele quer directamente chegar ao autoritarismo. Acho que ele pretende mais estabelecer um sufrágio restrito, mas ainda não percebi se censitário ou capacitário, embora ache que ele se inclina para o primeiro. Claro que em última análise isto não ia andar longe do autoritarismo. Aliás,tudo ele grita autoritarismo.
o grande problema na discussão dos malefícios de uma sociedade cujo objectivo principal é a democracia, não enquanto elemento de uma cnsituição mas como objectivo da sociedade e do Estado, e portanto, a criação de uma sociedade nivelada e igualitária é o facto de a maior parte das pessoas confundir a definição de democracia (majority rule, etc.) com os restantes elementos dos regimes.
Isto deve-se, a meu ver, a um número de falácias que se massificaram a partir da Revolução francesa:
1- todos os homens nascem iguais (tabula rasa), com o igual número de competências e vocações
2- não existe Verdade sem que essa mesma não seja aprovada pela maioria da população.
3- tudo o que a maioria da população decide é bom
4- a democracia - admitindo que pode cometer erros - admite a possibilidade de os cidadãos se redimirem, ao votar noutro candidato ou mudando de opinião no próximo referendo.
5 - o homem popular, capaz de angariar muitos votos, é um homem que merece governar.
6- toda a gente percebe de política interna, externa, economia e politica social.
quando se desfizerem estas 6 faláciazinhas, teremos uma democracia muito melhor.
mas todos os partidos políticos portugueses desaparecerão nessa altura
o contrário de democracia não é autoritarismo.
muitos regimes conviveram e convivem sem elementos democráticos nas suas insituições políticas, e proporcionaram aos seus cidadãos a maior quantidade possível de liberdade.
não é o factor de garantir a todos um lugar relevante (se se pode considerar o voto como algo relevante) na decisão política que se constroi uma sociedade perfeita.
Eu ainda vou acreditando na democracia e não acredito irrestritamente em nada disso ...
Acho que está muito bem apanhado, Manel, e que os problemas da democracia vêm essencialmente do que apontas.
Eu não acredito no que leio ...
não nada de errado na representatividade popular, Ary.
mas a democracia não pode ser o fim último de um Estado.
é apenas mais um dos meios disponíveis para uma sociedade racionalmente livre.
Manel do que eu percebi do que vi do arroja ela não quer mais do que um sistema ou de um conjunto de sabios a governar (e ai pergunta-se quem são os sabios? E pedro aroja como manel rezende tÊm de estar la de certeza quão grande é a sua sabedoria) ou então um sistema em que realmente se discrimine o que é diferente (ainda que seja igual, tou a falar no valor do direito de cada um), apoiado por instituições eclesiasticas com a familia nuclear como base...
Este estado é me familiar... Pensem... Quem dizia que nem toda a gente deveria ter voto porque não tinha consciencia? E usava a igreja para apoiar com caridade as populações?
ERA O ESTADO NOVO!!! Portanto o que se pede em Arroja é um regresso ao passado (o passado pseudo-glorioso em que tudo era bom para os iluminados que estavam no poder, mas mau para quem não estava lá!!)
Eu aposto que o Pedro Arroja se sentiria bem no Estado novo.
E aposto que O Manel (e não vejas isto como insulto) preferia viver num sistema identico, so que em vez de presidente, teriamos um Rei.
Isto alguns chamam de posições perigosas as deste arroja. Eu acho-as extremamente interessantes, pois mostram exactamente o caminho que não se deve seguir.
Quando li os 6 pontos fiquei um pouco Atonito
Mas respondendo aos 6:
1. Realmente nem todos são iguais, pois partem de patamares desiguais, mas todos têm os mesmos direitos, e o fundamento dos mesmos, também é igual, logo quem pode dizer que por ser mais velho(argumento à arroja) é melhor ou mais sabedor? ninguem! O fundamento do voto é todo igual e igual pa todos
2. Em democracia não se diz que a verdade é o que a maioria da população quer! isso é subverter a ideia de que se a maioria quer algo, então vale o que a maioria quer! Isso não significa que a verdade seja essa ou que essa seja a escolha boa, ou a correcta.
3.Não é tudo Bom. Mas em principio será melhor porque mais pessoas o dizem. O inverso, ou seja o que a minoria ou uma pessoa diz é que é bom, também está errado. Portnto se nos vamos reger por um conjunto de regras ou vamos fazer algo ele deve ter o consenso mais amplo possivel
4.É melhor este caminho do que não haver retorno sem revolução ou golpe de estado, que é no fundo o que todos os outros pedem...
5. Este é um erro Admito. As pessoas preferem o homem com carisma ao que sabe realmente. E dai a necessidade de uma educação politica na sociedade, se a houver ete erro é ultrapassado
6. Todos percebem? Não Nem nunca se disse tal coisa. O facto de as pessoas poderem mandar uma bocas, só significa que têm liberdade para o fazer. Da mesma maneira os que ouvem têm liberdade para ouvir ou não ouvir, e interpretar ou não o que foi dito.
A impossibilidade de tecer comentários sobre alguns temas, seria absurda. Imagina que não se podia fazer comentários sobre politica porque se considerava que os politicos é que sabiam tudo sobre politica. Tu manel nunca poderias ter escrito isso. Portanto é melhor abrir do que fechar a torneira da liberdade de expressão. O dia em que a começamos a fechar, é o dia em que começamos a fechar em muitos sitios (e isso já comça a acontecer...)
Duarte,
o "manel rezende" não tem uma licenciatura em nada, não tem um certificado de habilitações em nada, não fez um Master Degree em nada.
o manel rezende gostaria, no entanto, de não ser governado, de 4 em 4 anos, pela mesma alcateia.
A começar no Mário Soares e família e associados e a terminar no Pedro Passos Coelho e futura família e futuros associados.
e passo mais uma vez a dizer que o contrário de um Estado Democrático não é um Estado Autoritário.
No Reino Unido, só muito recentemente o elemento democrático do regime (os Commons) suplantou os restantes tradicionais. E os ingleses sempre foram muito livres, e penso que bem mais livres do que o são agora.
Há muitas formas de governo que assegurem a liberdade dos cidadãos e a sua legítima representação sem entregar todo o poder a representantes democráticos. E sim, a Monarquia é, sem sombra de dúvida, uma delas, a meu ver a melhor. E parece funcionar em muitos sítios.
Já viste que na tua resposta aos meus pontos, o teu ponto 3 nega o que disseste no ponto 2 e comprova todos os meus pontos?
A tolerância intelectual tem limites ... Haver alguém com formação jurídica que se arrisca a sair da universidade com este tipo de pensamento já nem é só lamentável é repugnante, uma derrota do sistema de ensino e para mim, que convivi contigo, uma vergonha pessoal.
oh, se é preciso ficar assim.
estás chateado só pq eu fui falar mal do "bochechas"...
Fora a referência à Monarquia, concordo com o Manel.
Se bem li o texto do Manel, trata-se de não entregar todo o poder, leia-se bem, TODO, a representantes democráticos. Se bem li, isso implica - por normal interpretação - limitar mais o poder dos actuais órgãos representativos. Num país com uma opinião pública fraquíssima, com ausência de poderes fácticos que actuem desinteressadamente, rectius, no interesse da globalidade, parece-me não só defensável, como razoável, defender que nem tanto se entregue à maioria.
*que não se entregue tanto
Acho que seria mais sensato então apostar na educação para a cidadania e para a participação social e política activa. Assim, em vez de se limitar o poder democrático poderia tentar-se melhor a democracia e renovar as caras dos órgãos representativos. Aliás, a chave está sem dúvida na educação e na alteração da mentalidade do tachinho, tentando formar cidadãos mais voltados para o verdadeiro sentido da política e da governação, do que a actual podridão a que se assiste.
Mas gostaria de saber que alternativas não democráticas e positivas é que sugerem para ocupar o poder que deixa de pertencer a órgãos representativos.
Manel, se achas que são sempre as mesmas caras/famílias/alcateias a governar, tens boa alternativa. Vota em partidos que nunca tiveram no governo. Acho que não te preciso de dizer quais são, que vais chegar logo lá :P
Tiago,
Eu retiro mais do que isso do texto do Manuel, mas mesmo que apenas fosse isso eu teria muitas reticências em aceita-lo. Qual a forma prática para implementar aquilo que dizes?
Manel Explicando melhor os pontos que tu disseste que eram contraditórios
Eu distingo Verdade, de opções de actuação. Ou seja uma coisa é dizer que o uma repartição de 13 pessoas tem 13 pessoas. (facto que estaria integrado na ideia de verdade)Independentemente da maioria que dissesse que tinha 19, o facto é que tinha 13. Outra coisa é dizer que a maioria das pessoas acha que a mesma repartição deve funcionar de uma determinada maneira porque consideram como correcto, e melhor essa gestão. Aqui sim tenta-se o tal consenso alargado. São 2 dimensões diferentes Uma é a da verdade, e essa, por maior que seja a maioria, a maioria nunca calará a verdade. Outra coisa é a opção de actuação.
Julgo ter explicado mais ou menos bem a ideia. (depois tb falas comigo)
Daniela claro que talvez o problema maior da democracia seja exactamente a falta de cultura Geral/politica/democrática e nesse sentido mais educação é necessária.
O que acho que realmente deve complementar a democracia são os movimentos sociais (como na suecia) que dão ideias, combatem desigualdades etc.. Isso seria o fundamental para aprofundar e alargar/educar/melhorar a democracia
Ari, a reflexão de alternativas à democracia (como a que agora se apresenta) parece-me ter sido varrida dos locais oficiais. Julgo que haverá alternativas, tenho algumas ideias que merecem maior reflexão. Para já ficou apenas a crítica - o meu post e comentários passaram por aí. O teu último comentário coloca as coisas num novo plano. Quando tiver qualquer coisa de consistente direi.
o problema da educação não se coloca.
os sistemas democráticos que melhor funcionam, os parlamentos representativos nas monarquias nórdicas (e para isto ver o index mundial de democracia) cometem igualmente erros atrozes, deixam-se muitas vezes levar pela simples opinião maioritária e muitas vezes contrária à sua constituição.
além de que o problema da educação democrática passa sobre a possibilidade de fornecer a cada cidadão a quantidade de informação necessária para poder distinguir um demagogo de um político sério.
como as duas principais pessoas que defenderam o tema da educação votam Louçã, temo que nem elas próprias saibam fazer isso.
a capacidade da democracia de massas de escolher um líder político é extremamente reduzida porque nem toda a gente está interessada em política, porque na política vão sempre prevalecer conjuntos de interesses pessoais (chamados partidos) e o conjunto de valores neste país difere muito de uma população tradicional no interior e norte do país contra uma camada intelectual "progressista" reduzidíssima, centrada nas cidades e em algumas juventudes que impulsiona o país politicamente, e outras culturas, como a mais comunitária (e comunista) do Alentejo.
dessa forma, se a Verdade, a ser atingida pela maioria, deve ser cedida pela Educação, e a educação a ser cedida pelo poder público, e como todo o detentor de poder público, principalmente numa democracia, tem todo o interesse em mantê-lo, é óbvio que a educação a ser fornecida vai ter um pendor muito pouco neutro, pouco pessoal e altamente massificado (como é próprio dos regimes de Manadas).
Isso vê-se em todos os regimes que se sustentam em ordens revolucionárias, como o Estado Novo ou o período posterior ao 25 de Abril.
No primeiro assiste-se a uma educação levada à deificação de personagens históricos aprovados pelo regime, e pela criação de um sentimento nacionalista próprio de um regime de massas, e no segundo assiste-se à criminalização de largos períodos da história de Portugal.
a educação pública tem o dever de formar cidadãos na cultura deles, seja ela regional ou local, nos valores locais e no respeito pelas instituições do seu país.
a educação para a democracia que muitos querem passa por algo muito diferente.
passa, por exemplo, pela aniquilação da cultura que eu possuo e herdei dos valores que me foram ensinados e que aprendi por mim.
é óbvio que, num cenário destes, a maioria dos portugueses prefira por os filhos em colégios particulares. a democracia dói quando afecta os nossos filhos.
só um ponto final.
é necessário derrubar por inteiro que a democracia é o menos mau de todos os regimes.
uma democracia pode impor uma censura sobre os seus cidadãos, pode proceder à expropriação de propriedades, pode proceder ao derrube de instituições tradicionais, pode até proceder ao derrube das formas de representatividade popular que os povos sempre tiveram.
a história da revolução francesa e da revolução de 1820, em Portugal, contam mesmo isso.
penso que era um dos Pais Fundadores da Constituição Americana, Hamilton talvez, ou Jefferson, que dizia que que a democracia levava à expropriação (o que justifica a larga margem de apoio que a democracia tem por cá).
Aristóteles dizia o mesmo, como Platão e o próprio Xenofonte, que tanto diferiam uns do outro.
Sócrates também se queixou, penso, e foi julgado por uma maioria...
é preciso derrubar a ideia da legitimidade popular como única possível e aceitável.
os mesmos pressupostos errados na soberania popular encontram-se nos da soberania aristocrática (no sentido de aristocracia elite, não propriamente de títulos nobiliárquicos) ou até da legitimidade monárquica.
os antigos já estudaram profundamente estes temas (e aconselho a República de Cícero para melhor se saber do que se fala) e penso que é criminoso dos mais recentes descartar esse conhecimento
Bonjour, mes amis!
Vejo que aqui o cantinho continua animado :)
Quando o gentil repto do Canotilho me chegou aos ouvidos, estava eu entretido no Hades, rindo alarvemente dos suplícios do pobre Sísifo. Decidi então dar aqui um pulinho e eis que me espanto ao ver este antro esquerdista assediado pelos liberais de serviço.
Vou então desentorpecer a verve e deixar aqui umas palavrinhas sobre o tópico em discussão:
Ó Resende (pun intended), não deixa de ser fascinante a tua escolha de autores. Tens aí o Platão, que queria o governo do "Rei Filósofo". Ainda me dirás de que cartola vais sacar um desses (o Arroja queres ver?). É fácil dizer que é necessário "derrubar por inteiro que a democracia é o menos mau de todos os regimes", quando se dá como melhor alternativa uma utopia irrealizável.
Depois o Aristóteles. Mas que tiro no pé! Basta ver que esse, ao analisar o que acontece quando um regime virtuoso se corrompe, descobriu que das três possíveis perversões (em Tirania, Oligarquia ou Democracia), a Democracia era tão só o menor dos possíveis males (onde é que eu já ouvi isto, Churchill?)!
Claro que, para Aristóteles, o regime mais virtuoso seria a Monarquia, mas, lá está, e como o próprio o reconhece, a Monarquia desejável é também ela uma utopia. Para a sua concretização teria de haver um homem tão justo e virtuoso que se sobreporia de modo indiscutível a todos os demais cidadãos. De tal maneira, como surge na “Política”, que qualquer outro indivíduo que pretendesse partilhar com esse Monarca o Governo do Estado, seria de um atrevimento tão desagradável quanto um vulgar homem querer partilhar com Zeus o Governo dos Céus. Mas a realidade é crua, como reconhece o realista Aristóteles: a tendência natural da vida é para que as pessoas, independentemente da sua idade, formação ou vivências, sejam tão semelhantes, que nenhuma individualmente se destacará ao ponto de se tornar merecedora desse cargo, para o qual apenas um “superhomem” seria digno (vulgo: Salazares, Arrojas e Dom Duartes Pios não são para aqui chamados).
E, acrescento: ainda que numa geração até seja possível que um tal indivíduo surja (um Mandela aqui, um Gandhi ali), já numa lógica de continuidade de regime “virtuoso”, seria difícil (impossível?) encontrar uma digna linha de sucessores.
Por isso, na realidade prática, o melhor regime é sem dúvida aquele que muitos de nós almejamos: o Governo dos muitos no interesse da comunidade política como um todo. Mas isto é apenas o princípio base! Para esse regime funcionar e perdurar, tem de haver várias condições. Aristóteles destaca algumas: um governo de base democrática que contenha aqui e ali “pitadas” de oligarquia e onde aquilo a que hoje apelidamos de “rule of law” seja respeitado, sacralizado e mantido como o bem mais precioso da comunidade.
E ainda com dois elementos que me parece essencial destacar:
Aristóteles, ao contrário de ti, parece-me, valorizava e muito o papel da educação. Na verdade, para ele esse era o elemento mais importante na solidificação do regime e precisamente nos termos que refere a Daniela: “uma educação para a cidadania e para a participação social e política activa, tentando formar cidadãos mais voltados para o verdadeiro sentido da política e da governação”. Uma educação que procure nutrir os princípios e estimular a vivência das liberdades democráticas, o que naturalmente leva os cidadãos a apreciá-las e querer mantê-las.
E depois, um elemento que Aristóteles reconhecia não existir ao seu tempo, mas que hoje é quase um dado adquirido: o predomínio numérico da classe média, de efeito moderador e estabilizador, pois uma comunidade política onde imperam os extremos da pobreza e da riqueza, “não é uma cidade de homens livres, mas de escravos e senhores, uns consumidos por inveja, os outros por desdém”. Recordando a “Ética” deste mesmo autor, é no meio que está a virtude!
Passarei em comentário seguinte à continuação desta minha apreciação sobre esta interessante temática.
Agora sobre os “Founding Fathers” e a Revolução Francesa.
Ainda bem que os referes, porque acho que aqui reside o equívoco desta discussão: vendo os autores que citas, creio que se torna pertinente uma pergunta prévia: será que rejeitas a “Democracia,” mas talvez não a “República”, nos termos empregues por Madison?
É que interessantemente, em Portugal a distinção não é operada assim, o que poderá estar a ser fonte de discórdia meramente aparente neste forum.
Passo a explicitar: não estarás a limitar o conceito de “Democracia” que criticas, à versão que os “antigos”, e por sua influência os “Founding Fathers” considerariam degenerada, ignorando a versão moderada (mas que não deixa de ser uma Democracia, segundo a concepção portuguesa) desde logo de influência Ciceriana e britânica?
É que as democracias mais antigas e sólidas do Mundo inspiram-se precisamente na experiência americana e inglesa, não na francesa. E o modelo francês (depois de morto tive tempo para me aperceber disso ;p) é realmente uma perversão conceptual!
De facto, no caso americano, à semelhança do inglês, e como se vê sobretudo em Madison (mais do que em Hamilton), queria-se instaurar um governo limitado com base no consentimento dos eleitores. No caso francês o objectivo era diferente; seria a instauração de um novo absolutismo: em vez de monárquico, seria popular e republicano!
Ora, em meu ver, a “Democracia virtuosa” que aqui defendemos é certamente mais inspirada no primeiro conceito do que no segundo. Vou agora estender-me um pouco nesta diferenciação, que me parece essencial: ela surge particularmente clara quando comparamos “Du contrat social” aos “The Federalist Papers”.
O primeiro, daquele pulha do Rousseau (Pluto o guarde com tortura), queria uma solução política pseudo-perfeita em que a "vontade geral" surge como um valor absoluto. Advogava Rousseau “a total alienação por cada associado de ele próprio e de todos os seus direitos, para toda a comunidade”.
Uma comunidade identificada como um todo unitário, onde se rejeita o pluralismo! Uma abstracção igualitária que me causa os mesmos calafrios que tendo a sentir quando ouço um “comuna” a falar.
Com efeito, creio que Rousseau e através dele a Revolução Francesa ficaram marcados por delírios despóticos. Esta ideia, retirada do “Contrato Social”, tudo resume: "como o soberano é formado integralmente pelos indivíduos que o compõem, ele não tem nem poderá ter qualquer interesse contrário ao deles; deste modo, o soberano não tem necessidade de dar garantias aos súbditos (...) O soberano, pelo mero facto de o ser, é sempre tudo o que deve ser".
Ora, se desta abstracção totalitária e cega nasce a Democracia, eu sou o Coelho da Páscoa!
Veja-se agora o contraste com Madison: "Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre o governo. Ao criar um governo que será administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside no seguinte: devemos, em primeiro lugar, capacitar o governo para controlar os governados; e em seguida, obrigá-lo a controlar-se a si próprio. A dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência ensinou à Humanidade a necessidade de precauções adicionais."
Regressamos aqui, vejam lá, ao imperativo moderador de que já ouvíramos falar em Aristóteles. A ideia é velha: Alexis de Tocqueville já nos alertava para o perigo da “tirania da maioria”; Anthony Downs advogava a necessidade de existirem partidos com boas bases ideológicas para que funcione correctamente uma democracia representativa; Robert Dahl fala-nos a este propósito no seu conceito de “poliarquia”, etc.
Ofereça-se esta conclusão: a “Democracia” de que nos fala Churchill não é obviamente a perversão rejeitada desde a Antiguidade. Quando nos diz que “Democracy is the worst form of government, except for all those other forms that have been tried from time to time”, Churchill fala da democracia anglo-saxónica, aquela cujas fundações a História tem demonstrado serem mais sólidas e duradouras. Se excluirmos a existência do Monarca, este conceito decerto estaria mais próximo daquilo a que Madison chamava de “República” e que, pergunto-me se não será precisamente o conceito que estamos todos aqui a defender :).
No fundo, e como dizia John Adams, o que se quer é um Governo "bound by fixed laws, which the people have a voice in making, and a right to defend".
Ufa, realmente o "bichinho da saudade" faz de mim um ser palavroso. Não me demoro mais.
Au revoir!
Querido Max,
Que bom ter-se resolvido abandonar a infernal morada para consolar a nossa infortunada solidão.
Dos seus puns estou eu bem escudado, descanse. Ao menos é-me reconhecida alguma originalidade pelo uso do meu nome.
A sua intervenção não veio trazer assim nada de muito novo. Agradeço muito os seus conhecimentos dos clássicos e dos Fed. Papers (tenho os meus cá em casa também, penso que até cheguei uma vez a usar essa citação de Hamilton - ou Publius - numa assembleia na FDUP, e estará, se não me engano, no Federalist Paper nº10).
No entanto, o que estamos a discutir aqui são as virtudes do majority rule.
De facto, a educação política dos Pais Fundadores é diferente da sua, e da nossa experiência, porque eles não tiveram de aturar as asneiras dos franceses - principalmente do Rousseau, esse brilhante psicopata, pai da Esquerda Moderna. O próprio Jefferson mostra em várias das suas cartas, um desprezo pela "canaille" das cidades europeias, que ele julgava serem o maior perigo para a República.
Mostra também confundir algumas definições. Como eu disse, uma democracia pode votar pela expropriação de bens e pela censura. Isso já aconteceu nos EUA e na França, e cá muitas e muitas vezes.
Há que distinguir valores como a propriedade, a liberdade de expressão e a responsabilidade individual, que são valores liberais, dos valores democrático (majority rule).
Hayek explica isso muito bem nas suas obras políticas.
Quanto à concepção República enquanto não-Democracia nos termos clássicos, não é exclusivo dos americanos. Os autores medievais e renascentistas portugueses, quando tratando de temas políticos, referiam-se muitas vezes, e em cartas direccionadas aos Reis, ao "bem da república".
O próprio Herculano, um monárquico ferrenho, referia-se ao Ensino como "fundamental para o bem da República".
Em Portugal sempre houve república, porque república não é mais que o conjunto de instituições políticas de um país, com diferentes fontes de legitimidade, que compõe a sua constituição.
O que se discute aqui é o elemento democrático da nossa república, que desde 1820 - e principalmente desde 1910 - tem vindo a dominar a nossa política, tantas vezes abandonada aos interesses das massas, dos grupos de terror urbanos, como as Formigas da carbonária, e outros casos de reforço e exaltação dos benefícios da "soberania popular".
Digo-lhe também que os elementos democráticos da Constituição republicana americana são diferentes dos originais.
O Senado, por exemplo, foi alvo de uma profunda modificação, por parte de Wilson, que de facto relega a tradição anti-democrática dos Pais da América.
O próprio Hamilton chegou a pensar numa solução monárquica para os EUA, se bem que sem sucesso.
Quanto ao teor do seu primeiro comentário, não acredito que Salazar e Duarte Pio tenham muito em comum.
Acho que nunca um monárquico entregou alguma vez na história tanto poder sobre um pais a um homem como alguma vez os republicanos fizeram.
O Rei George III nunca pode tanto contra os seus súbditos americanos como Barack Obama, ou o Congresso.
Luis XIV nunca tributou acima de 15%. Nunca lhe ocorreu o imposto especial por conta, senão tinha perdido a cabeça.
Portanto, como pode ver, e em resume, nem liberalismo quer dizer democracia, muito pelo contrário até, nem os reis foram todos tiranos, muito pelo contrário até.
Manel, o facto de ser o Estado a dar-te a possibilidade de estudar no ensino público, não implica que te doutrine os conhecimentos. Prova disso é que ambos fizemos o secundário no mesmo sítio e no entanto claramente ambos temos visões distintas do mundo. Ou seja, educar para a cidadania e para a democracia não tem necessariamente que formar pessoas que vão pensar de forma igual. Pelo contrário, despertar o interesse por esse tipo de questões faz com que se procure mais informação para conseguir formar pensamento crítico. E provavelmente foi isso que os nossos pais fizeram, daí termos ido à procura de elementos que permitissem formar-nos uma opinião. Ambos chegamos a conclusões diferentes, se isto não te mostra nada, então não entendo onde queres chegar.
O facto de as duas pessoas que defendem a educação votarem Louçã prova-te o quê? Que ambos temos um plano de formatação de mini bloquistas/esquerda moderna? Eu acho apenas que mostra o peso que cada um de nós dá ao esclarecimento das massas. Provavelmente a ti dá-te jeito que não sejam assim tão esclarecidas, o que provavelmente terá uma ligação remota com a tua aversão há possibilidade de todos sermos iguais.
Mon cher ami,
Uma correcção: o Fed n.º 10 foi redigido por Madison, não por Hamilton. E a citação em causa é do n.º 51, também de Madison. Esta correcção nem seria significativa se não fosse o facto de estar a confundir dois “Founding Fathers” que, de certo modo se encontravam em campos opostos. Considerando que Hamilton era um federalista, inimigo do comércio livre, proteccionista e intervencionista, devo dizer que me causa certo incómodo ver um liberal dos quatro costados como tu a dar-lhe méritos que cabem a Madison, esse sim um paladino da liberal democracia.
Retomando o tema em análise: a questão aqui começa com o que acabas de referir, a “confusão de definições”. Isto é um problema com que nos encontramos na História da Humanidade: os conceitos políticos, cujo uso varia consoante a época e a geografia, tendem a dar em resultados confusos aquando de discussões deste tipo. A origem latina de “Res Publica”, enquanto “coisa pública” também não ajuda ao caso.
É por isso que tens um monárquico como Herculano a falar de “República”. Certamente não estará ele a falar do mesmo conceito que emprega Maquiavel, quando este o opõe ao "Governo do Príncipe". Outros exemplos poderiam ser encontrados, bem como para a situação de “Democracia”, mas nem quero ir por aí.
Felizmente trataste de convenientemente limitar o âmbito do debate: a “majority rule”. Pois bem, creio que me bastará remeter para o que já disse anteriormente: podemos distinguir o plano do princípio nuclear do regime daquilo que são os seus elementos mitigadores. Evidentemente que em democracia a regra fundamental é a da maioria. E isto tem a sua razão de ser.
Já que referi Maquiavel, penso que me cabe então recordar que ele próprio afirma no seu “Discorsi” que “os governos do Povo são melhores do que aqueles dos Príncipes” e que “se compararmos os defeitos do Povo com os dos Príncipes, bem como as suas respectivas boas qualidades, veremos que o Povo é superior em tudo o que é bom e glorioso”.
Ora, evidentemente que, levando isto à plenitude das suas consequências, o melhor dos Governos é aquele em que a “res publica” depende da vontade dos governados. E essa vontade deve ter certamente por base, enquanto critério de escolha, a regra da maioria.
Mas ninguém nega que se aplicarmos essa regra de modo cego, estaremos a erguer uma forma perversa de Democracia. Ora, para impedir que a “majority rule” resulte na “tiranny of the majority”, temos então as tais “precauções adicionais”. Sobre esta temática já referi Tocqueville, mas também tens Madison, Stuart Mill e outros.
Já que referes expressamente a liberdade de expressão e a propriedade, é simples: a existência de um “Rechtstaat” consagrador de direitos fundamentais (com base na tradição do direito natural, como encontramos na “Declaration of Independence” ou na “Bill of Rights”) permitem a sua defesa.
Eis a simplicidade de um Estado de Direito Democrático: o "government of the people, by the people, for the people”, em que se obsta à possibilidade de perversão mediante a existência de garantias e contrapoderes.
Eu até compreendo que critiques a política “abandonada aos interesses das massas, dos grupos de terror urbanos, como as Formigas da carbonária, e outros casos de reforço e exaltação dos benefícios da "soberania popular".
Mas o que te falta ainda demonstrar é o seguinte: porque motivo é que para obstar a essas situações, a resposta não reside apenas em melhorar a tua democracia, promovendo a introdução nela de outros mecanismos, muitos dos quais podemos encontrar noutras democracias já mais amadurecidas? Para quê, afinal, procurar a solução fora desse conceito, quando claramente a História nos demonstra que nele se contém a maior propensão para a “virtude” de todos os regimes até hoje experimentados?
Eu podia aqui falar do pensamento da Ayn Rand, mas dado que estamos num meio kantiano, acho melhor evitar problemas ;p
Bem, chamam-me de volta ao Rio Flegetonte para a sueca com o Átila, o Pirro e o Iskandar, portanto,
Au revoir!
The American system is not a democracy. It is a constitutional republic. A democracy, if you attach meaning to terms, is a system of unlimited majority rule; the classic example is ancient Athens. And the symbol of it is the fate of Socrates, who was put to death legally, because the majority didn’t like what he was saying, although he had initiated no force and had violated no one’s rights.
Democracy, in short, is a form of collectivism, which denies individual rights: the majority can do whatever it wants with no restrictions. In principle, the democratic government is all-powerful. Democracy is a totalitarian manifestation; it is not a form of freedom . . . .
The American system is a constitutionally limited republic, restricted to the protection of individual rights. In such a system, majority rule is applicable only to lesser details, such as the selection of certain personnel. But the majority has no say over the basic principles governing the government. It has no power to ask for or gain the infringement of individual rights.
L. Peikoff, um dos mais brilhantes alunos de Ayn Rand
Caro Max,
Fico profundamente satisfeito pelo facto de ter voltado a fazer descer sobre a discussão um véu de ... bom senso. Depois da sua passagem até começo a concordar com o Manuel, que parece agora razoável e ponderado.
creio que estamos a discutir na base de definições que nem todos conhecem e nem todos concordam.
o Max diz que quer melhorar a democracia pondo-lhe elementos que a limitem, eu digo que quero uma melhor república com forças que limitem a democracia.
mais ou menos, queremos dizer o mesmo.
no entanto, nem todos pensam assim, e é necessário retirar as devidas ilações do poder totalitário do majority rule.
principalmente no que toca à democraci directa, cada vez mais em voga nos dias de hoje, que é nada mais que a pior manifestação da democracia massificada.
Manuel,
Até concordo contigo. Sou desfavorável relativamente ao uso que tem sido dado aos meios de democracia semi-directa.
termino dizendo que a Constituição Americana, criada por homens que temiam a majority rule, o Rei Demos, a ochlocracia, é aquela que, provavelmente, salvaguarda as instituições de representação popular mais saudáveis, liberais e justas do mundo.
para criar uma democracia boa, a meu ver, é necessário conhecer primeiro o potencial negativo da mesma.
Se fosse médico, receitava-te três comentários diários de Max. Ficavas muito mais controlado =)
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