Li recentemente o livro serve de base à exposição. Passo a transcrever o primeiro parágrafo d’ “o remorso de baltazar serapião”, da autoria de valter hugo mãe:
“a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos”.
Toda a história desfiada pelo correr do livro surge despojada de juízos de valor directos. O autor demite-se de o fazer, contando ao invés uma história com todas as suas faces, independentemente da reprovabilidade que pudessem suscitar. Não enche o leitor com convites à sua conversão moral, não caracteriza as personagens de modo a, indirecta embora concludentemente, levar o leitor a “simpatizar” com as mesmas ou, ao inverso, a “detestá-las”, não procura eufemisticamente descaracterizar a linguagem bruta (no sentido de não depurada) e directa do povo que parece verter a crua realidade em que tantas vezes subsiste.
É este, afinal, mais um dos registos possíveis da literatura. Que, se aparentemente nenhum fito visa, na verdade é também intervenção social. E, talvez por isso, conheça um maior eco nas reflexões de cada um. O leitor é mais autónomo, conforma o seu próprio juízo com uma liberdade diferente; o autor desprende-se de veicular as suas concretas considerações.
Trata-se, no entanto, de uma confronto que o autor já prevê no momento em que trabalha a obra. Sabendo a comunidade em que esta será publicada, pode prognosticar quais os efeitos que decorrerão da história que contará. E perante tal cenário opta por colocar uma nova realidade à frente do seu leitor – tantas vezes parece que ganhamos mais um olhar por cada livro que lemos –, para que compreenda uma certa realidade, e para que, perante a mesma, retire as suas próprias conclusões, ao invés de se oferecer os resultados advindos de uma dada reflexão sobre a realidade, para que quem o queira consuma.
Perante a profusão informativa em que nos vemos imersos, com o contínuo oferecimento de heróis e vilões para acarinhar ou lançar à fogueira, é este um registo que faz falta, e que tanto carinho merece no dia de hoje. Tomemo-lo como uma tese (a história, ou melhor, o quadro moral de Baltasar Serapião), façamos a antítese, tiremos a nossa síntese. Coisa pouco cultivada, em tempos pouco virados para a reflexão.
Coloco ainda mais duas citações, retiradas do capítulo três, um pouco ilustrativas da voz do narrador.
“ela haveria de sentir por mim amor, como às mulheres era competido, e viveria nessa ilusão, enganada na cabeça para me garantir a propriedade do corpo. invadirei a sua alma, pensava eu, como coisa de outro mundo a possuí-la de ideias para que nunca se desvie de mim por vontade ou por instinto, amando-me de completo sem hesitações ou repugnâncias. e assim me servirá vida toda, feliz e convencida de verdade”
“os sargas, a vivermos com uma vaca, mas nada de ter uma vaca para que nos trouxesse o leite, se era velha de mais, e nada para que nos aquecesse a casa, se o aldegundes limpava o esterco constantemente e entre a porta e a janela os buracos ventavam o mais que se imaginasse, arrefecidos de interior. era uma vaca como animal doméstico, mais do que isso, era a sarga, nosso nome, velha e magra, como uma avó antiga que tivéssemos para deixar morrer com o tempo que deus lhe desse.”
Originariamente, aqui.
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