quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Tópica de um Referendo

Este texto foi escrito para publicar no falecido blog "Novas Energias" uns dois ou três dias antes do referendo de 11 de Fevereiro de 2007, já lá vão quase 2 anos. Levam-me a rebublicar o texto as boas críticas que recebi de pessoas de ambos os lados da barricada e a necessidade que voltei a sentir de explicar a opinião e a revolta de uma imensa minoria silenciosa de portugueses que votaram Sim e Não com a sensação de ter sangue nas mãos e de não poder lava-las.

(Hoje escreveria um texto diferente (bastante mais jurídico). Um semestre não dá para digerir muito e o texto também não era para ser lido por juristas).
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Pergunto-me se devo escrever este texto, a questão é tão delicada que me interrogo se vou ser eu que, “do alto dos meus 18 anos”, vou conseguir mais que irritar uns e outros. Mas depois de ter visto tantos ovos, embriões, fetos, bebés, mulheres algemadas, encarceradas, tantos martelos caindo, ter ouvido tanta asneira, tanta confusão, tantos números contraditórios, tanto dogmatismo, tanta radicalização, tanta falácia, de facto acho que se eu também disser asneiras, for confuso, apresentar números errados ou contraditórios, for dogmático, radical e falacioso não deverá ser por mais essa gota de água que o copo irá transbordar. Como disse muito bem Rui Ramos ontem no Público poucas vezes houve em Portugal uma feira de enganos tão completa como a montada a propósito deste referendo sobre o aborto.

A verdade é que tudo tem sido enganador, a começar na pergunta que não sendo “uma fraude” exige uma leitura muito atenta que a campanha não ajudou nada, contribuindo somente para a confusão (confusão aliás que não beneficia parte alguma). Campanha aliás que se destinou mais a inventar problemas que a discuti-los: uns porque exibiam imagens de fetos com meses de gestação, usando crianças como veículo de propaganda, distribuindo papéis em que embriões já batiam o coração, falavam e eram ameaçados com facas; outros porque se indignavam como se houvesse milhares de mulheres presas por ter feito abortos, uns porque não querem pagar “clínicas de morte”, outros porque pareciam fazer todos nós crer que as “coisas humanas” vêm no bico das cegonhas que as distribuem um pouco aleatoriamente por entre as mulheres mais jovens, pobres e desintegradas das instituições; uns indignavam-se como se se fosse tornar o aborto obrigatório, outros como se fosse este mais um domínio em que estávamos a perder o já mítico “comboio da Europa” (sim, aquele de que estamos sempre a correr atrás como se estação nunca mais acabasse).

Não há fé como a do recém-convertido e nesta campanha também não faltaram os que exibiam como troféus os seus recém-convertidos. É curioso como mais do que as nossas ideias o que queremos exportar é as nossas certezas, mesmo que não sejam assim tantas. Assim, de um lado e de outros todos se esforçaram por mostrar um país divido, separado em dois campos inconciliáveis, o dos que tinham sede do sangue das mulheres e dos que tinham sede do sangue das crianças. Obviamente que lutar por esta visão é lutar por uma batalha perdida, porque mais do que o país é cada indivíduo está divido.

Chegou-se, no entanto a um dado curioso: quase toda a gente é contra a penalização das mulheres e quase toda a gente é contra o aborto.

Devia ter sido com base nestes pressupostos que o debate devia ter começado. Não devíamos ter partido do pressuposto que o outro é sádico, pois esse é o primeiro passo para não se chegar a conclusão alguma.

Mas não. Isso não podia acontecer. Era preciso haver sangue. Emoções fortes. Frases bombásticas. Era preciso esconder do público este consenso, até porque seria impossível manter a coerência a não ser que se quisesse “perder cheio de razão”.

Metade da poeira para os olhos, outra metade para debaixo do tapete e o não renuncia à despenalização e o sim apoia a liberalização. Era preciso vencer, mesmo à custa de uma má solução.

Por isso é que esta questão nuca deveria ter sido levada a referendo. Compreendo que, depois de 98, ninguém queira passar por cima de muitos milhões de votos, mas matérias delicadas serem referendadas só dá em leis que espelham o processo que lhes deu origem: uma pergunta de sim ou não. É uma resposta redutora, até porque não estamos a aprovar uma lei, ou uma nova alínea nas excepções do Código Penal, estamos a votar um quadro legal para uma nova lei que deverá consagrar bem mais do que apenas do direito de, por decisão da mulher, se levar a cabo a interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas num estabelecimento de saúde medicamente autorizado.

Com tudo isto não quero dizer que todos os defensores do Sim e do Não não têm a mínima razão naquilo que dizem e quero acreditar que foi mais o nosso jornalismo de faca e alguidar que deu relevo aos que acham que uma aborto é o mesmo que um homicídio e aos que dizem que na sua barriga são elas que mandam.

Gostava ainda assim de deixar uns apontamentos sobre algumas questões que têm feito correr muita tinta:

 

1.    Vida

 

Vida é quase tudo: o espermatozóide é vida, o óvulo também, bem como o ovo resultante da fecundação. A própria Constituição não diz que a vida é inviolável mas sim a “vida humana”. Saber quando há vida humana é muito mais complicado do que saber quando há vida. Até porque a vida é um processo evolutivo contínuo e ninguém pode dizer numa aula de biologia “Ah! Viram meninos? Agora passou a haver vida humana”.

Mais fácil será dizermos que às 10 semanas, numa altura em que o embrião ainda não emite ondas cerebrais e portanto também não bate o coração, não reage grandes estímulos do exterior, provavelmente também não sente dor, não é dotado de razão ou consciência da sua própria existência, que não existe vida humana.

No entanto, ali está um conjunto de células que são mais que qualquer outro conjunto de células, sendo um ser completamente diferente das duas pessoas que o geraram e da mulher que o carrega no seu ventre. O que está ali aproxima-se de tal forma de um “quem” por ter essa identidade própria que penso que será mais correcto dizer que estamos perante “vida humana em potência”, perante uma promessa de vida humana.

Importa frisar bem isto: a mulher bem pode mandar na sua barriga, mas “aquilo” não é seu, tem um código genético diferente, pode até ter um tipo sanguíneo diferente. As possibilidades que se abrem perante ele são as mesmas das que se abrem perante qualquer um de nós, até porque já formos um conjunto de células bastante pacato e desinteressante. Não preciso de dar exemplos de grandes figuras da História mundial que nunca teriam nascido se tivessem sido “abortadas”, aliás esse tipo de discurso faz lembrar o do “se o nariz de Cleópatra…”. Ainda assim era de chorar a perda da nona sinfonia.

Nesta perspectiva devemos encarar essa vida com grande respeito, atribuindo-lhe a dignidade que ela merece. Choca-me profundamente alguém colocar linearmente a sua felicidade à frente da oportunidade dada a um ser que ainda nem tem capa para o seu livro. A imponderabilidade quantitativa e qualitativa da vida humana é um corolário essencial da dignidade da pessoa humana que, não podendo aqui ser usando em toda a extensão, não pode ser esquecido nunca.

Mas temos de encarar com igual respeito não só a vida da mulher como todas as outras “vida efectivas” que serão afectadas pelo nascimento ou não da criança. Esta tem o “direito de nascer”, sem dúvida, mas também tem o “direito de nascer desejada”, numa família com disponibilidade material, física e emocional para ela.

O ideal seria, claro, que todas as crianças fossem acolhidas no seio de uma família com as posses, a maturidade, a disponibilidade para lhe oferecerem as condições para uma vida plena. Mas é estranho ver que são quase sempre aqueles que consideram que o papel do Estado devia ser reduzido que agora criticam o Governo pela falta de apoio que este dá às mulheres obrigando-as a abortar. E isso traz-nos até ao segundo ponto.

 

2. Custos & Comp, Lda.

A crua realidade é que custa muito menos ao Estado financiar um aborto (250 euros?) do que financiar o nascimento da criança (só aí bem mais que 250 euros) e o seu desenvolvimento. Com isto não digo que ter crianças é mau para o Estado, um Estado sem cidadãos seria um absurdo, e ninguém quer um país de velhos, mas há famílias que não têm condições para ter uma criança ou mais uma criança e vai ter de ser o Estado a suportar esse peso (afinal tem toda a obrigação de o fazer).

A despenalização do aborto fica cara, mas mais caro saíram ao Estado os 10.396 internamentos derivados de abortos clandestinos em 1995, os 10.322 em 1996, os 10.407 em 1997, os 10.982 em 1998, os 10.536 em 1999, os 10.752 em 2000, os 9922 em 2001, os 11.089 em 2002, os 10.865 em 2003 ou 10.920 em 2004 ou os 10.511 em 2005; isto para não contar com os episódios de urgência que não levaram a internamento e com os casos que não foram registados como decorrentes da prática de aborto. Mas o mais “caro” nem são os internamentos são os custos no bem-estar das famílias que tiveram as crianças, são os custos de viver na saúde psicológica e física da mulher que abortou clandestinamente, são os dias de trabalho que a economia nacional perdeu, são os despedimentos de mulheres por ficarem grávidas.

O CDS-PP diz que 30 milhões é muito dinheiro, eu não me importaria de dar os meus 3 euros todos os anos para poupar noutros “custos”.

 

3.    Imposição de uma perspectiva particular

 

Muita gente do Sim tem dito que uma das razões para votar sim é o facto de esta posição dar à mulher uma possibilidade de escolher, que contrasta com a imposição que o Não faz. Há algum fundo de verdade nisso, até porque continuará a haver gente que após a despenalização do aborto continuará, com grande coragem, a optar pelo caminho mais complicado e decidirá levar a gravidez até ao fim. O Direito não serve para impor que as pessoas façam escolhas moralmente correctas (pessoalmente acho que a Moral as obrigaria a ter a criança em qualquer situação, mas compreendo que tal seja muito discutível) mas sim para “ordenar” a vida em sociedade para a Justiça de forma a permitir a própria convivência social. Daqui se extraí um princípio fundamental: o Direito não pode pedir nem heróis, nem sábios nem santos.

Qualquer lei sobre o aborto tem de ter isso presente e garantir a defesa dos direitos da criança e da mãe ao mesmo tempo que não pede, nem à criança, nem à mãe, que sejam heróis.

A actual lei já toma isso em consideração (é preciso uma boa dose heroísmo para dar à luz uma criança nascida de uma violação e talvez uma ainda maior para criar uma criança portadora de malformações graves). No entanto, é chocante ver uma mãe abortar porque não queria uma rapariga, ou porque não lhe dava muito jeito naquela altura. Estou certo de que estes são casos excepcionais e que regra geral o aborto não será usado como método contraceptivo ou como forma de escolher o sexo da criança, até porque esta não é uma prática psicológica ou fisicamente inócua para a mulher. Quando 75.7% das mulheres dizem num estudo da Associação para o Planeamento da Família que abortar foi uma decisão “muitíssimo difícil” ou “muito difícil” é evidente que abortar nunca será “como mandar um SMS”. Pelo menos se não houver uma grande mudança nos valores operada por futuras gerações.

Eu não vejo, apesar disso, nos movimentos “pela vida” ou nas posições dos clérigos nenhuma tentativa de impor uma perspectiva particular através da lei. A lei não é acética e espelha valores. Todos temos o direito de propor valores. Se propomos uma obrigação não estamos a obrigar, estamos a propor. Se amanhã for proposto um referendo para reduzir a velocidade limite na auto-estrada para os 150km/h ninguém estaria a ser obrigado a conduzir a essa velocidade. Por favor: “se quiserem ser ouvidos, ouçam!”

 

4.    Consciência da mulher

 

Obviamente que a mulher não deverá tomar esta decisão sozinha ela ser devidamente acompanhada por uma equipa multidisciplinar, na qual, em dos psicólogos, das assistentes sociais, dos médicos, até seriam bem-vindos representantes da confissão religiosa da mulher (desde que não fossem pagos pelo Estado) e que, à semelhança do que acontece na Islândia, acompanhassem obrigatoriamente a mulher durante o período de reflexão (que no Luxemburgo é de pelo menos uma semana) e depois da intervenção.

E o homem? Regra geral não acredito que a mulher queira tomar a decisão sozinha e o homem deverá ser naturalmente incluído por ela no seu processo de decisão. Haverá sempre casos em que isso não acontecerá, ou porque o homem não quer ser ouvido, ou porque a mulher não quer que o homem saiba, ou porque a mulher não sabe quem é o homem.

O argumento de que é a mulher quem fica grávida não me parece decisivo aqui, especialmente se o homem quiser assumir ele em exclusivo as responsabilidades inerentes ao poder paternal.

 

5.    Saúde Pública

 

Este é um problema de Saúde Pública, quando a Associação para o Planeamento da Família estima que ocorram 18 mil abortos clandestinos por ano, quando há centenas de mulheres a ir a Badajoz todos os anos, funcionando como a forma de discriminação em função do rendimento, quando há milhares de internamentos e quando todos sabemos que não vão ser as acções de planeamento familiar ou as instituições de apoio a mães solteiras que vão resolver o problema. Como não será a despenalização do aborto.

O aborto é um problema, ser clandestino e ter consequências para a saúde da mulher apenas o agrava exponencialmente.

 

6.Derrota do Não

 

O Não não saiu derrotado dos últimos 9 anos porque ninguém pode exigir resultados a um movimento que não controlava a aplicação das medidas que preconizava. Da mesma forma, se o sim ganhar mas não forem seguidas as recomendações dos movimentos ninguém poderá dizer que o Sim foi derrotado.

 

7.    Despenalização

 

A despenalização é o que existe para a quase exclusividade em Portugal das mulheres que nunca são perseguidas, nunca são julgadas e nunca são presas. É esse o resultado de uma lei hipócrita e uma lei que não é cumprida não é menos injusta à custa disso.

Despenalização apenas para mãe faz com que o aborto pareça uma qualquer droga. Os defensores desta hipótese caiem num paradoxo fantástico: têm muita pena da mulher que é obrigada a fazer o aborto para acabar com o seu sofrimento, mas perseguem quem, quantas vezes ao contrário deles, faz alguma coisa mais do que ter pena da mulher.

 

8.    Valores Absolutos

 

Todos os valores são absolutos muito relativos. Quando matamos em legitima defesa a vida não é um valor absoluto, quando se pode pedir a um militar que morra pela pátria a vida não é um valor absoluto, quando a vida da mãe se confronta com a vida do filho, quando a do filho se confronta com a da mãe, quando se podem desligar as máquinas a doentes que dependem delas para viver, quando se podem recusar transfusões de sangue, quando se pode recusar a reanimação, quando ninguém é perseguido por se tentar suicidar, quando a própria Igreja ergue altares aos seus mártires a vida, claramente, não é um valor absoluto, quanto mais o valor absoluto.

 

9.    Aborto clandestino

 

Claro que o aborto clandestino não vai acabar, haverá sempre quem não queira que a operação fique no registo clínico, quem ache que é uma vergonha tão grande que prefira fazer tudo às escondidas de todos, mulheres que se vão decidir só depois das 10 semanas etc. Mas a experiência de outros países mostra que o aborto clandestino diminui consideravelmente e em Portugal segundo estimativas da Associação para o Planeamento da Família 72.7% dos abortos foram realizados até às 10 semanas, enquanto apenas 1% se realizou depois das 17.

Espanta-me como tantos defensores do Não se escandalizam mais com os números residuais de aborto no caso de haver despenalização do que com, essas sim, “cifras negras” do aborto clandestino.

 

 

No dia 11 de Fevereiro a sociedade portuguesa na figura dos seus cidadãos eleitores, entre os quais me encontro pela primeira vez, com um orgulho que mal podem imaginar, tem uma escolha particularmente difícil em mãos. Todos os argumentos aqui vertidos e muitos, muitos, muitos mais têm de se encontrar com uma pergunta e dizer que sim ou que não.

E essa resposta vai ter influência directa na política nacional e na vida de muitas centenas de milhares de mulheres que nos próximos anos vão ou não poder escolher e na vida de muitas centenas de embriões que se vão tornar ou não bebés, crianças, homens e mulheres.

Não percebo como alguém pode ter tantas certezas. Para mim é a loucura da escolha a um dos seus cumes mais agudos.

Mas é o que as sociedades fazem: escolhem. Quando forças entram em conflito fazem escolhas e traçam limites cientes que o pluralismo extremo se autodestrói.

O que escolher quando me pedem para optar entre uma lei que eu conheço e que acho injusta e outra que não conheço e que se adivinha injusta?

Que mal fez a criança em qualquer situação? Que mal fez a mãe em algumas situações?

Pede-me para escolher entre o ovo e a galinha? Como?!

 

Eu vou votar não por uma razão que é muito pequena, muito mesquinha, muito frágil no meio de tantos argumentos válidos de um lado e de outro: é mais fácil mudar a lei do que fazer recuar direitos adquiridos.

Isto pode soar muito como um: se quero dar a mão e me pedem o braço eu não dou nada, mas custa-me saber que vai de certeza haver casos em que os fetos terão perdido a oportunidade de viverem em vão. Ninguém vai beneficiar com a sua morte: a pátria não vai ser salva, ninguém vai sobreviver graças a eles, ninguém evita o inferno neste ou no outro mundo, não … terão morrido simplesmente por causa de capricho. Podem dizer que o bom senso tudo resolve, que se a lei for aplicada por cada mulher com bom senso tudo correrá bem. Mas a lei não se destina apenas a pessoas com bom senso, destina-se a todas.

Espero que consigamos, enquanto comunidade, “ter a coragem para mudar o que é possível mudar, a sabedoria para aceitar o que não é possível mudar e o discernimento para saber distinguir umas coisas das outras”.

1 comentário:

ASL disse...

Justamente a propósito dos dois anos do referendo, escrevi no Bazar sobre o aborto, reiterando a minha posição..

Achei o post muito interessante.. De certo modo vai ao encontro de algumas coisas que escrevi.. Abraços!

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