quarta-feira, 25 de março de 2009

a criação do mundo

(A quem não tenha lido o livro e tenha intenção de ler - A criação do mundo, Miguel Torga - aviso que no texto se colocam citações que podem condicionar, para pior, a percepção da obra)


Tenho tido imensa vontade de escrever algo sobre o livro desde que o acabei. Ergue-se, no entanto, uma dificuldade de monta: como começar? E a esta dúvida alia-se uma outra: num livro que, segundo o autor, é "crónica, romance, memorial, testamento", sobre que parcela me hei-de debruçar? O relevo da dúvida leva-me, cobarde, a fugir ao embate de frente com o todo. Fico por algo mais comezinho: até que ponto vale a honestidade para connosco mesmos?

Na criação do mundo, decalcada da vida do autor, encontramos a luta de um homem pela sua própria liberdade. É uma espécie de grito que subsiste ao longo de todas as páginas:
- ao fintar a condição de filho de lavradores, conseguindo ir para além da 4ª classe
- ao sair do seminário, sabendo que, com tal, perigava (decisivamente) a possibilidade de continuar os estudos
- ao ir para o Brasil, trabalhando arduamente durante 5 anos
- ao voltar a estudar aos 16 anos, depois de 5 de interregno, e ter conseguido formar-se em medicina
- ao clamar pela liberdade política
- ao lutar pela liberdade de criação artística.

Só que à constante superação das barreiras que o mundo lhe parecia opor correspondeu o custo de, lenta e gradualmente, se ir afastando dos homens do seu tempo. O custo de ser livre, ou seja, de lutar para ser livre, acabou por se traduzir num isolamento pessoal. Logo em adolescente, "preconiza-se" o preço dessa honestidade

[dizia-lhe o tio] "- Aprende, e quando vier a férias evite ofender seu Adalberto, fazendo gala da sabedoria. Compreenda que ninguém gosta de ficar por baixo, e que não há necessidade de ofender as pessoas...
Esquecido dessa advertência cheia de nobreza, perdera a cabeça no regresso à fazenda, a teimar que Camões era maior do que Guerra Junqueiro.
- Que diabo importa lá isso? - acudia, conciliador.
Mas o sr. Adalberto queria continuar a pôr A Velhice do Padre Eterno acima dos Lusíadas, e eu protestava. No fim da discussão, quando o enteado saiu fulo da sala, deixou-o afastar-se, e recriminou-me então, pesaroso:
- Tanto lhe recomendei..."

Se, aí, pouco mais do que umas quantas consequências inocentes advieram, ao longo da vida o custo da rebeldia acentuou-se. Das tertúlias literárias da juventude, é votado ao ostracismo pelos que nas mesmas (e consigo) participaram. Fora um ou outro afloramento, não descortinamos no livro como terá agido Miguel Torga. Apenas sabemos o porquê: a honestidade para consigo mesmo, que o leva a ter de enveredar por outros rumos.
Mas se uma história assim apresenta uma aura épica - um homem, em respeito por princípios que pauta por fundamentais, marcha sozinho num deserto (e, aqui, ecoam com inteira relevância, os versos de Régio "Não sei por onde vou/não sei para onde vou/sei que não vou por aí") - ouvi-la pela boca do que a vive dá-lhes toques de tragédia (e de verosimilhança). Por trás do homem frio, estanque, em bruto, esconde-se aquele que duvida ao escolher, sempre optando pela via mais conforme ao seu carácter, por mais tormentosa que se afigure. Mas, nesta cruzada, ocorre um sucessivo esvaziamento da esperança com o correr dos anos. Se em novo, os frutos da opção de ser fiel a si podem ser prognosticados, em velho retrospectiva-se se o passado foi ou não conforme ao sonho da juventude. No fim, que resta?

"Quisesse ou não quisesse, durasse o que durasse, tudo estava consumado. O que viesse ainda em nada modificaria a crueza dos factos: o mais essencial de mim por explicitar, as obrigações cumpridas, os afectos gastos, os sonhos acordados. Sem mais direito ao amor e à inspiração, despojado de ambições e a redoirar a esperança à sobreposse, nem a lição de Agarez, a cavar por descargo de consciência a costeira maninha das courelas, me podia valer. De ora em diante, como lenitivo, só o cilício cruciante da meditação.
Sim, a vida ia continuar. Outros dias viriam cheios de sol, de flores e de frutos. Mas não seriam meus."

No fundo, abre-se uma pergunta imensa: de que serve a honestidade? Um homem, em sua homenagem, luta, e faz dela bandeira de toda uma vida. O preço é o da citação que coloquei. Valerá a pena?

2 comentários:

Hugo Volz Oliveira disse...

Bem me pareceu ter visto esse livro pousado numa cadeira quando fui aí.. Não conhecia, e deste-me vontade de conhecer. Se vale a pena? Depende de nós e do que esperamos. E, pelos vistos, hoje encontra-se cada vez menos honestidade por aí. Agora anda aos pares, como os polícias.

Street Fighting Man disse...

já vai um tempo desde a última vez que li um livro do torga e faz-me falta.acho que aproveito este post como sugestão para uma leitura próxima

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