Hoje decidi escrever-vos sobre outras escritas, até porque não só de Direito vive o jurista. Assim, lembrei-me de um livro de que gostei bastante, “As Intermitências da Morte”, o qual tenho por hábito referir em várias ocasiões. Deixo-vos a minha “crítica literária” sobre a mesma obra. Espero que gostem. Recomendo, vivamente, a leitura do livro.
“As Intermitências da Morte” é uma obra genial de Saramago, publicada em 2005. A frase inicial “No dia seguinte ninguém morreu”, transmitindo uma ideia de fim é apenas o início de uma das mais inteligentes e inesperadas avaliações à sociedade, alguma vez já concebida, por um português. É uma obra que reúne em 214 páginas uma ampla e divertida discussão acerca da morte e da vida, do amor, da coincidência, do destino e futuro, palavras-chave na idealização humana da sua vida.
Esta é a história de um país, sem nome, habitado por vulgares humanos, as nossas personagens, igualmente sem nome, que de um dia para o outro se vê diante do mais inexplicável acontecimento, a interrupção da morte. Durante sete longos meses, este país conhece a realidade de uma existência sem morte e todas as consequências que lhe estão implícitas. Saramago, de uma forma irónica vai reflectir sobre a existência do mundo tal como o conhecemos, criticando a sociedade, através das cómicas reacções dos mais variados sectores a este acontecimento, desde a Igreja ao Governo, passando pelas agências funerárias, lares de terceira idade, seguradoras, jornalistas... Está criado o cenário perfeito para o debate acerca de um dos temas que mais intriga a Humanidade desde sempre, a razão pela qual tudo o que nasce morre.
Inicialmente é-nos retratada a intermitência da morte, uma visão dos acontecimentos a partir do dia 1 de Janeiro, dia a partir do qual ninguém mais morreu naquele estranho país. Este é o momento mais cómico da obra, pois, o leitor passa a ter uma visão acerca das discussões causadas pela misteriosa pausa da morte e todos os problemas acarretados por esta. É-nos revelada a opinião da Igreja que se vê sem motivos para ter fiéis, pois eles não vão morrer; das agências funerárias que se passam a dedicar a enterros de animais domésticos; dos filósofos que vêm perder sentido múltiplas teorias, das famílias cujos familiares não morrem mas ficam como que em “coma” para a eternidade, dos lares de terceira e quarta idade, como ironiza o autor, sem espaço para receber estas pessoas. Destes grupos, destaca-se um, o Governo que tem de resolver este grande problema e se vê envolto nas mais diversas discussões, quer com os representantes sindicais, quer com a Igreja ou a recém-nascida “maphia”, substituta da antiga máfia, e que terá como propósito livrar-se dos corpos que ao passarem a fronteira para os países limítrofes morrem finalmente.
Passados setes meses e sete capítulos, uma misteriosa carta cria novamente o alvoroço entre os habitantes do molestado país, carta esta revelada na televisão, redigida pela própria morte que afirma que “a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios (...) ofereci uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre (...) a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”. Estes passam a ser dias de grande tristeza para os que esperam pelo seu fim.
A última parte desta história é relatada de forma pessoal pelo autor. Uma das cartas, cor violeta, que a morte enviava como aviso aos humanos que iam morrer dentro de oito dias, voltou insistentemente para trás. Este vai-se apresentar como um caso único na existência da morte, pois é a primeira vez que alguém que devia ter morrido não morreu. Desta forma, a morte tira uma semana de férias para resolver este grande problema. Durante essa semana vai conhecer a vítima que lhe resistiu, descobre ser um violoncelista. Assim sendo, a morte torna-se numa bela mulher que seduz o artista para lhe poder entregar a carta que lhe tirará a vida. Ao ser humanizada a morte conhece a realidade humana mais certa, a seguir à própria morte, o Amor. Apaixona-se pelo violoncelista e desiste de matar, segundo o que sugere o final da obra: “A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.”.
filhos da Duna
Há 3 dias
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