domingo, 27 de julho de 2008

Auto de um feio Portugal.

DN de 26/7/08. Páginas 2, 3, 4 e 5. Uma bem conseguida reportagem relata a história de 3 paraquedistas caídos em combate na guerra da Guiné que, 35 anos depois, são trasladados para casa. Relata a dor dos que ficaram. Relata as vidas desses que foram. E sugere – porque em cada palavra tal cruamente transparece – o horror da guerra, no todo muito superior à algébrica soma das partes.
É também a história de um país. De um país manchado.


Acto Primeiro. A dor. Memória.
Cena 1 – o liberal
António Vitoriano, Castro Verde, 21 anos. Fazia aviões de papel. Sonhava ser piloto de aviação. “Muito activo, liberal e ambicionava viver em Inglaterra.” Cicatriz de infância na cabeça, de uma queda de burro, o que permitiu a identificação. Estudou até à quarta classe. Começou a trabalhar como barbeiro, também foi barman. “Encarou a Guiné com naturalidade e como um desafio”.
Cena 2 – o anjo
José Jesus Lourenço, Fornos, Cantanhede, 19 anos. “Era um anjo, por isso não me pertencia”, diz a mãe. Acaba a primária e, nas palavras do pai, começa a trabalhar no duro, cozendo cal e enfornando os fornos. Deixou cá um amor interrompido. Que fez luto, a que se associaram todas as raparigas da aldeia. “Era o moço mais bonito do lugar”. Conta um companheiro que morreu para salvar outro. Recorda ainda que, na iminência da partida, disse “Ai a minha mãe! Ai a minha namorada!”.
Cena 3 – o valente
Manuel Peixoto, Gião, Vila do Conde. Pouca informação nos é dada. Assim reza o escrito no verso de uma das fotos que o acompanhava: “Dentro do avião quando íamos para o quartel do exército que está perto da fronteira. Uns riem-se e outros pensam no que podia acontecer perante as operações, mas correu muito bem só tivemos um morto”. Nas palavras de um companheiro “Era um homem destemido, uma verdadeira máquina de guerra: eu ouvia um tiro e escondia atrás das árvores, ele não, ele rompia para o inimigo.” Ou, segundo o irmão, “já aqui era valente, faz parte da família”
Acto Segundo. Analepse: A emboscada.
Cena 1 – o inferno
23/5/08. “Aquilo era o inferno! A minha arma escaldava de tanto fogo. Houve uma altura que começou a disparar sozinha”. 45 minutos sob fogo. Uma coluna de 60 a 70 homens. Tiros do PAIGC. Mortos. “Levamos os mortos às costas até Guidaje”. Começam a decompor-se, da humidade. Inumados dois dias depois.
Cena 2 – o padre e a GNR.
Entra o pároco de Fornos na casa da família e anuncia a morte de José Jesus Lourenço, a 28 de Maio de 1973. A GNR anuncia-se e anuncia à família o fim de António Vitoriano. Abre-se o luto.
Acto Terceiro. A vergonha
Cena 1 – A medalha
Na altura de umas comemorações do 25 de Abril a família de Manuel Peixoto é chamada a ir a Lisboa para receber uma medalha de honra pelo seu filho, caído em combate. A cerimónia era, afinal, um grande comício. Sem medalha.
Cena 2 – A trasladação (1)
Até 1968, o Estado só trasladava os restos mortais se as famílias pagassem esse serviço.
Cena 3 – A trasladação (2)
Lopes Camilo, vice-presidente da Liga dos Combatentes: “Não abramos uma caixa que nunca mais conseguimos fechar”. Teme que mais famílias venham reclamar os seus mortos. Tem um subsídio de 250 mil euros para realizar toda a tarefa de identificação de corpos e cemitérios militares.
Cena 4 – A trasladação (3)
Os corpos daqueles 3 soldados voltam a casa 35 anos depois.
Acto Quarto. Os outros.
Cena 1 – Os jovens
800 mil mobilizados.
Cena 2 – Os que não voltaram.
Estimam-se 10 mil mortos.
Cena 3 – Os que ficaram deficientes físicos.
4 mil.
Cena 4 – As valas.
1250 militares em diversas zonas de combate.

Retomo o fito que me orienta. Centenas de milhar de jovens são recrutados durante anos. Vão para uma guerra que não é sua. Vão defender o sonho de um Império que não é seu. Deixam a família com quem querem ficar. Matam, têm de matar. Entram na selva africana. Vêm um preto armado e matam. Outro e matam. O preto é o inimigo. São brutos mesmo que o não fossem. São duros para serem temidos. Matam para não serem mortos. Numa guerra que não é a sua. Sai da barbearia e vai para a mata. Sai dos fornos e vai para a carnificina. Sai do campo e torna-se uma “máquina de guerra”. As famílias esperam. As famílias aguardam. A guerra também não é sua. Um dia são emboscados e, agora eles, morrem. São inumados dois dias depois. A família sofre, a namorada sofre, o padre sofre, a aldeia sofre. A guerra continua. Os companheiros sofrem e guardam as últimas palavras para recordar à família. “Ai a minha mãe! Ai a minha namorada!”. O outro era um bravo. O outro ainda era um boémio. Agora são mortos. Numa vala da Guiné.
A Guerra acaba. A política muda. As antigas colónias tornam-se Estados independentes. Instabilidade política em Portugal. No seguimento de uma revolução iniciada, quiçá golpe de estado, procurava-se criar uma sociedade socialista. Socialista. Com respeito pelo homem. Socialista. Jovens capitães – brevemente majores – encabeçam e orientam os rumos do país. Socialistas. Há que esquecer a guerra, há que avançar. Comemora-se o 25 de Abril, os cravos, a paz. Os velhos soldados – terminasse a guerra com vitória e seriam “veteranos” – voltam a casa. Retomam as suas vidas. Acordam a meio da noite lembrando-se das agruras daquele tempo. Mas não importa. O país está a avançar. As famílias recordam os filhos, irmãos, cunhados, maridos que ficaram. Mas não importa. A guerra já foi. O país agora é outro. Socialista. O centro é o homem. O filho ia receber uma medalha em Lisboa. A família viaja cerca de 7 horas. Para assistir a um comício. Há que avançar, há que avançar.
35 anos depois, três caídos em combate voltam. 35 anos depois, mais de mil militares continuam no solo de África. 35 anos depois todas as famílias os recordam. “A vinda dele dá-me paz”, diz a mãe de um. “Tenho dito às pessoas: cantem e batam palmas quando o meu filhinho chegar à nossa terra. Por favor, não abracem, não chorem nem me dêem os sentimentos”. 35 anos depois. Desde os 42 até aos 77 ansiando pelo filho. E os que ainda não vão voltar. Os que nunca vão voltar. E as famílias que ainda e sempre os aguardarão. Mesmo depois de caída a esperança.
Insuficiência de fundos. Insuficiência de fundos. Insuficiência de fundos para trazer de volta aqueles que fizeram uma guerra que não queriam, a que não se podiam furtar, que morreram em combate. Há prioridades. Há sempre prioridades. Há que avançar, há que avançar.

Há vergonha. Há vergonha que nasce de tão depressa “fazer por esquecer.”De tão depressa esquecer. Há vergonha.

5 comentários:

Ary disse...

"Malhas que o império tece" ...

Afinal de quem são as guerras?

Anónimo disse...

e se fosses levar no cu,ramalho??

tu,esse ari e o canotilho...

cambada de cromos!!

TR disse...

kripton, e se desses o teu nome? kripton soa apaneleirado.

TR disse...

tendo, por exemplo, o iraque como referencia, facilmente se dirá que a dada altura era a guerra de um povo - quiça do mundo ocidental - e hoje, perante a informação que surgiu, nada mais foi que a guerra de uma Administração americana. É complicado saber de quem são as guerras. E o curioso é que consoante a mesma resulte em vitória ou em derrota terá "patronos" diferentes.

Mas a questão está deslocada. O que me preocupa é o respeito por quem combateu. Por quem foi obrigado a combater. Isso é que é central.

Ary disse...

Kripton,

tens um post só para ti.

Tiago,

sei que a pergunta está deslocada, mas acho que ela é bastante interessante, precisamente pelas razões que apontaste.

Acho, pelo contrário, que raramente está em causa o respeito por quem combateu.

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