1. Começo pelo Direito. À posição de propalar um Direito expurgado de quaisquer valorações morais contrapõe-se a própria natureza da norma. A norma jurídica é já uma resposta – grosso modo, um comando – a um problema. Um problema humano, de pessoas, com as suas crenças e convicções. De pessoas com preocupações morais, ou sem as mesmas. Naturalmente, a solucao deverá levar em conta as especificidades de cada um, especificidades essas com moral bastante à mistura.
2. Seguindo o ensino de Baptista Machado, a norma é um dado positivo que remete para um direito natural (embora com um entendimento particular do mesmo). Partindo da Teoria da Linguagem, considera a norma um símbolo que remete para um referente, a ideia de justiça/ Direito assente na comunidade. Veja-se o exemplo [nosso] do abuso do direito. Da leitura do artigo 334 o intérprete deverá, à luz da tal ideia de Justiça acolhida, encontrar quais as situações jurídicas cujo exercício se traduza em ilegítimo. O acérrimo positivista normativista lamentavelmente não retirará qualquer conclusão da dita norma. Nem que seja porque a mesma alude a cláusulas gerais que, também elas, carecem de ser preenchidas com recurso à tal ideia de Direito e de Justiça assente na comunidade (já para não referir a dificuldade de positivismo interpretar a mais clara das normas…as palavras são signos convencionais e, por conseguinte, remetem inevitavelmente para algo que está para além de si), ultrapassando os espartilhos da linguagem. Naturalmente, a solucao "justa" para uma comunidade é aquela que leva em conta o seu proprio quadro axiológico. E sendo a Religião um destacado meio de trasmissão de valores, facilmente os valores comunitários sao, mediatamente, trazidos para o Direito por aquela.
3. Assim se dirá, desenvolvendo o aflorado, que a ideia de Justiça é eminentemente social.
4. Nesse sentido, uma eventual protecção de uma matriz essencialmente católica do casamento não será necessariamente um atentado jurídico…Ou o apoio do Estado às Igrejas necessariamente reprovável. O que se trata, mais uma vez, é de o Direito dar guarida a instituições assentes na comunidade, protegê-las, fazê-las viver. Não sendo institucionalista e, mais, não reconhecendo a valia de reconhecer quaisquer forças imanentes a dados institutos jurídicos, defendo a protecção de institutos e instituições queridos pelas pessoas. A pessoa é o fim do Direito; os institutos meios para sua realização. Como tal, proteger estes significa favorecer a realização da pessoa, concretizando o desiderato do Direito (na concepção que perfilho, claro está).
5. Em que medida carecem de ser protegidos é outra questão. Direi que há ocasiões em que o casamento pode ser essencialmente de matriz católica; e que há ocasiões em que se justifique que o Estado apoie vivamente as Igrejas. Não que promova quer um quer outro de per si; simplesmente, que promova a realização da pessoa que por tais meios se quiser realizar. No tempo hodierno, parece não se justificar uma visão tão tradicionalista do casamento – assim o penso. Mas se tal houvesse não haveria inevitavelmente um atentado a um Direito estratosférico, puro, só ao alcance dos magnânimos. Pelo contrário, a legitimidade ou ilegitimidade da norma apenas se aferiria pela sua conformidade ou não à ideia de Justiça assente na comunidade.
6. O ordenamento jurídico vigente regula a vida de certas pessoas de uma certa comunidade. Como tal, deverá ser um repositório de soluções desejadas pelas mesmas. Se a comunidade é eminentemente religiosa, será natural proteger a religião; se a sociedade é empreendedora, será natural proteger a economia de mercado. Assim, é evidentemente impossível conhecer o Direito de um outro espaço cultural sem conhecer esse mesmo espaço. Sob pena de não conhecermos a que problema a norma dá resposta.
7. A negação em absoluto de qualquer ligação entre o Direito e a Religião é pois, em linguagem jurídica, um completo atentado ao princípio da igualdade. Princípio da igualdade esse que, de tantas vezes invocado, se apresenta quase infantil, de tão subtil o seu conteúdo e de tão elevadas incompreensões geradas. Pois se o Direito bebe da filosofia, da ciência, da economia, da própria história, o afastamento da religião traduz uma ostracização de um domínio que desde sempre mereceu tratamento por parte do homem. Poder-se-ia dizer, tão-somente, que o Direito, afinal, vive sem esses domínios (nem ciência, economia, filosofia,…). Mas é pressuposto não acolhido no presente escrito e com debilidades bastantes. Nem que seja porque pressupõe o acolhimento de uma dada corrente de Filosofia do Direito (analogicamente, o dadaísmo é uma forma de arte, precisamente a que nega a arte, a não-arte).
8. Com isto se conclui dizendo que a separação absoluta entre a religião e o jurídico (como que este nao pudesse dar guarida a valoracoes daquela), apesar de muito poder ser, não é um corolário da ideia de Direito. Será, isso sim, um qualquer imperativo que decorra de um Direito historicamente vigente num dado espaço, e que só pode ser exportado para uma outra comunidade em que consiga obter viabilidade.
9. Assim, o conteúdo de um possível veto do Presidente da República a uma lei por motivos “morais”, de génese religiosa, não será necessariamente meta-jurídico. Aliás, tal motivação poderá ser estritamente jurídica. Nomeadamente se corporizar uma ideia de Direito enraizada e querida pela comunidade, um dever-ser desejado.
filhos da Duna
Há 3 dias
2 comentários:
Fora de tópico...
Para quando umas fotos ou uns videos do ultimo debate?
ora aí está um pedaço de doutrina, Tiago.
felicito-te, cada vez mais aprofundas esta técnica, é fantástico.
penso que partilhamos os mesmos pontos, pelo menos não vejo nenhum ponto óbvio para refutar a tua "teoria".
vou fazer um link para este post :)
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