quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A polícia dos usos

1. A edição brasileira da revista Playboy publicou umas fotos – como seu hábito, afinal – da actriz Carol Castro. Numa das ditas fotografias, a senhora surge com um terço. Ora, incomodadíssimos, o Instituto Juventude pela Vida, do Rio de Janeiro e um padre (padre Llodi) intentaram uma acção judicial para suspender de novas edições da revista com tais imagens. E viram satisfeita a pretensão.

2. Volta a polícia dos usos a atacar. O terço, independentemente da significação que tem para o crente, extravasa – em muito – tais limites. Ao mesmo se associam um determinado conjunto de valores e realidades: a oração, a probidade, a ingenuidade, a família, a comunidade. Seja como for, ao ser utilizado numa sessão fotográfica de uma revista dita erótica, não surge enquanto objecto religioso mas sim enquanto adereço decorativo. No caso concreto, diz a actriz que estava a tentar recriar uma personagem de uma novela em que participa, embora (digo eu) com trajes mais apelativos para o target da revista. O terço surge então perfeitamente deslocado do seu sentido religioso, aquele que podia justificar o relevo da ofensa.

3. Grosso modo, há ofensa sempre que um sujeito se sinta afectado na sua integridade – física, moral – ou respeitabilidade. Assim, existem naturalmente ofensas negligentes. Ainda que o agente (no caso, a revista) possa não ter intenção de lesar a integridade ou a honra do outro, o dano pode surgir. O problema surge quando do ponto de vista comunitário se dá guarida à protecção de sensibilidades que não carecem de ser protegidas. Ou seja, quando a comunidade considera que a ofensa (esta, em concreto) é juridicamente relevante e não deve persistir.

4. A questão é de substancial actualidade, e o precedente que abre (ainda será precedente?) é gravíssimo. O que a decisão traz é que um dado objecto, independentemente de ser apresentado como estético e decorativo, não pode ser usado para certos fins simplesmente por ter uma origem religiosa e, com isso, poder lesar uns quantos, para lá das implicações sociais derivadas – para além do perigo de abrir um mau precedente.

5. Há dificuldades decorrentes da aceitação de um modelo de uma comunidade aberto e laico. Uma das primeiras é a necessidade de aceitar certas práticas que, não obstante poderem simbolizar um atentado contra uma certa tradição acolhida por alguns membros da comunidade, devem ser aceites, dado não implicarem uma violação de quaisquer bens fundamentais. É que aqui não se tratou de proibir o uso indevido de um símbolo religioso (o que, eventualmente, se justificaria); não, tratou-se de evitar que um símbolo de matriz religiosa fosse usado num sentido deslocado daquele que obteve na sua génese. Sentido esse corrente e aceite pela globalidade da comunidade…

6. É que depois talvez venham os defensores dos direitos dos animais, protestando contra a utilização de pequenos felinos ou de canídeos nas sessões fotográficas; seguir-se-ão os ecologistas a negarem o recurso a cenários de exterior; depois os comunistas recusando qualquer utilização de foice ou de martelo; talvez cheguem os sociais-democratas, indignados pela presença de uma sombra que sugeria a imagem de umas pequenas três setas; por fim, chegarão os naturistas, revoltados com a associação do seu modo de vida àquela desavergonhada que passa as férias vestida.

7. São, de novo, os perigos do puritanismo. Com a perversidade de poderem destruir essa malfadada liberdade de expressão.

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