sábado, 23 de agosto de 2008

A escola e o saber

Há dias li um muito curioso post de Osvaldo Manuel Silvestre n’os livros ardem mal (http://olamtagv.wordpress.com/2008/08/17/leitores-precisam-se/). Creio que a tónica do texto está correcta – “Ou seja, não se lêem livros porque não há real motivação social para o fazer”. No entanto, há um importante ponto em que divirjo, em acordo com João Diogo, por texto publicado num outro blogue –http://joaoediogo.wordpress.com/2008/08/16/entre-livros-editores-livrarias-e-leitores-um-comentario-a-um-post-de-osvaldo-silvestre/.- ou seja, na parte em que considero que a Universidade (e a escola) têm responsabilidade.

Fixemos os pressupostos da reflexão e, firmes os mesmos, reflictamos. Diz João Diogo:

“Podemos ver jovens estudantes que passam quatro, cinco anos na universidade apenas a ler apontamentos, alguns o desplante das fotocópias, mas mais: sem o mínimo sinal de perceberem que serem bons naquilo que estudam implica, necessariamente, ler e muito de outras coisas. Um dos exemplos flagrantes, um que agora conheço melhor, é o caso dos ditos jurístas. Os alunos de direito, por exemplo, gastam fortunas a comprar os livros dos seus professores, que muitas vezes não trazem nada de novo, e não compram, não lêem mais nada.”

Por seu turno, afirma Osvaldo Manuel Silvestre:

“Onde divirjo de João Diogo é na responsabilização que faz da universidade por este estado de coisas. Não querendo ser paroquial, permito-me alargar o âmbito dessa responsabilização a toda a escola portuguesa, mas para a refutar. O meu conhecimento do nosso sistema de ensino, nos seus vários níveis, mostrou-me à evidência que o problema não é a escola”

E, ainda,

“Quanto às fotocópias, lamento mas são uma consequência fatal da inexistência de bibliotecas universitárias realmente apetrechadas (pois não se pode dizer apetrechada uma biblioteca que possua apenas um ou mesmo dois exemplares de obras de referência) ou com horários de funcionamento indignos daquilo a que muita gente aprecia chamar «a vocação da universidade». A situação de indigência financeira das universidades, porém, e sejamos realistas, não permite mais.”

Neste sentido, há dois pontos que carecem de abordagem. Por um lado, uma possível responsabilidade da Universidade e (no seguimento do alargamento do objecto da abordagem trazido por Osvaldo Manuel Silvestre) da escola e, num outro âmbito, a própria postura dos alunos.

1. Sou, como facilmente se apurará do próprio visionamento do template do blogue, estudante de Direito. Como tal, enquadro-me perfeitamente no “grupo” sobre o qual qualquer um dos dois posts se debruça (pelo menos na parte a que aludi). De igual forma, atravessei há pouco o ensino secundário, de modo a que a minha memória ainda não me trai, recordando plenamente o modo como a matéria é leccionada, a matéria que é leccionada (pelo menos em visão geral) e, ainda, como os professores aliciam ou cativam os alunos para “irem mais além”.

2. É com essa recordação viva que traço um cenário negro da escola. Sem dúvida que hoje estão bastante bem apetrechadas, sem dúvida que dotadas de excelentes instrumentos de apoio e, inegavelmente, sem dúvida que hoje apresentam diversas actividades em que os alunos podem aprender mais (olímpiadas da matemática, campeonato nacional língua portuguesa, …). Mas fica-se por aí, quedando-se no essencial – o estímulo do conhecimento.

(ensino de um só livro)

3. O estímulo para o aluno caminhar para lá do manual adoptado é quase nulo. Qualquer disciplina conhece um livro adoptado (não esperando cair em erro, Erasmo: “tenho medo de homens de um só livro”), e a leccionação, globalmente, não vai para além dos mesmos. Se em certas disciplinas tal não causa celeuma (penso na matemática), noutras os problemas são de maior leva. Paradigmaticamente temos o caso de História. Ano após ano de ensino os manuais continuam a produzir-se do mesmo modo: uma página de texto, outra de “documentos de apoio”. O aluno para obter bons resultados não precisa de consultar documentos de apoio extra-livro, nem ler qualquer autor nos originais, quedando-se pela glosa. E, não obstante, pode obter a classificação máxima. Se, por um lado, ainda se poderia arguir que era ao professor que caberia tornar o ensino mais dinâmico e exigente, por outro refutar-se-ia perguntando, tão-somente, que estímulo haverá em correr o risco de “ir mais além” (o grande horizonte do conhecimento) quando tal não conhecerá qualquer reflexo nos exames nacionais (apesar de tudo, a plataforma giratória que recolhe o aluno no secundário e ou devolve de novo à procedência ou o entrega ao superior).

4. Por experiência própria, considero o caso de Português mais gravoso. Tendo tido a disciplina de Português B, e fora alguns casos esporádicos, nela não encontrei incentivo de monta para continuar a ler. O ensino continua a limitar-se à abordagem de umas quantas obras, sem procurar levar o aluno a conhecer qualquer autor para além do “programa”. Se em dado ano o que importa é Vergílio Ferreira, noutro é José Saramago. De modo que para a faixa etária anterior à minha (que o programa mudou no ano em que entrei) Saramago continua a ser uma abstracção, um Nobel, e para a minha Vergílio Ferreira uma voz do passado, um eco já quase – ou totalmente - inaudível (friso que estou nos domínios de Português B). Mais se dirá: dentro de cada autor é o livro específica que releva, e não a procura de conhecer um pouco mais para além do mesmo (ou seja, do livro no contexto da obra). E quem não toma contacto com a língua enquanto tem uma disciplina para tal vocacionada, dificilmente o fará de outro modo.

(Universidade)

5. Passemos à Universidade. Mais uma vez, encontro-me centrado na FDUP. João Diogo tem por um lado inteira razão no que afirma mas, por outro, acaba por ofuscar certos dados que, não obstante, merecem ser trazidos à discussão. Se é verdade que não raro se encontram estudantes que “fazem o curso pelos apontamentos”, por outro é inegável que o salto qualitativo da Universidade face ao ensino secundário é gritante. Talvez abismal, daí que muitos nele caiam.

6. Na Universidade já se encontra – genericamente - a promoção do conhecimento, do ir mais além. O aluno já sabe que a boa nota se alcança com muito estudo, com uma constante procura da luz na bruma, sendo que é ele próprio que tem de alumiar o próprio caminho. E é, também, por aí, que o panorama é mau. Habituado a crescer numa cultura em que a escola não educa para cultivar a ânsia de conhecer mais – e de para tal ter muitas vezes de trabalhar autonomamente – esbarra numa imensa parede e, claro, recorre – muitas vezes - à via mais fácil. Os apontamentos, as sebentas rasuradas e, frequentemente, a consulta do colega do lado.

7. Se a Universidade tem responsabilidade? Creio que sim, mas não tanta como possa parecer ao primeiro olhar. Porque a Universidade é ainda um continuum do secundário e, sob pena de mergulhar num profundo autismo, não pode obrigar o anão a subir a escada do gigante. O que com isto quero frisar é que o problema é estrutural, do ensino no seu todo.

8. O problema agudiza-se com a família não incentivar ao culto do “saber” (como referido no post de Osvaldo Manuel Silvestre, em parte não citada). Mas tal só agudiza a necessidade de ser a escola a fazer tal promoção. O jovem que vive em família desequilibrada só conhece a normalidade se, por alguma via, tal lhe for dada a conhecer. Assim, a escola, latu sensu, não está inocente neste processo. Até porque tem essa responsabilidade adicional.

(fotocópias)

9. Quanto às fotocópias, considero haver duas razões de monta para tal acontecer. Desde já afirmo não acreditar que a maior parte dos alunos que recorra aos meios o faça por insuficiência económica. Se o fizesse, então a solução passaria por bibliotecas melhor recheadas. Então, quais as razões?

10. Por um lado, o facto de a actual geração – crescida numa sociedade já “internetalizada” – estar habituada a obter certos conteúdos a um valor inferior ao justo e devido – é o que acontece desde logo com a música, um dos produtos mais consumidos pelos jovens.

11. Por outro, a indiferença face ao conhecimento. Se o jovem fotocopia livros e, simultaneamente, se rodeia de bens de luxo ou, apenas, de bens perfeitamente dispensáveis em prejuízo da compra dos manuais no original, só me ocorre ser por não valorizar o conhecimento, por não ali ver um objecto de culto, ou com valor bastante para pagar um pouco mais para o adquirir (ao contrário do que encontra numas calças, num jogo de computador, num poster especial, numa camisola original do clube).

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