quinta-feira, 4 de junho de 2009

Dos Animais, das plantas e das outras COISAS

1. Eu gosto de animais - não tenho nada contra as plantas, mas isso agora não vem a propósito - e ainda assim não pude deixar de me sentir ... ultrajado, revoltado, humilhado, rebaixado ... pelo último post. Não só como jurista, ou projecto de jurista, mas sobretudo enquanto ser humano.


2. O Direito é uma ordem normativa que pretende regular alguns aspectos essenciais da vida em comunidade, ordenando a afectação de bens jurídicos sob o signo da Justiça e protegendo-os - isto não pretende ser uma definição correcta, nem sequer uma definição, apenas um esboço que nos vai permitir retirar algumas conclusões.

3. Se essa comunidade que tem de ser regulada é de homens, se essa afectação de bens se faz entre os homens, de outra coisa que não Direito estaremos a falar quando se reconhcem bens a outros sujeitos.

4. Como qualquer ordem normativa o Direito é dirigidos a seres livres, capazes querer e entender, capazes de se determinarem de acordo com a razão e não de acordo com os seus instintos.

5. Direitos são esferas de liberdade. Não faz sentido criar esferas de liberdade, dar poderes ou faculdades a quem não é capaz de as gozar.

6. Todos os direitos têm de forma directa ou indirecta deveres que lhes são correlativos. Dar direitos a quem não conhece deveres é tão absurdo como dar liberdade a quem não podemos exigir responsabilidades.

7. O exercício de direitos por terceiros encarregados da defesa dos direitos dos animais parece ser aqui a única solução possível, mas não vejo como estabelecer qualquer tipo de relação entre os animais e os terceiros que lhes confira a legitimidade para actuar em seu nome. 

8. E como seriam eles compensados por danos não patrimoniais? Deixa cá ver ... dois ou três ossos extra por ter sido vítima de maus-tratos? E em caso de morte do animal? Para que esfera jurídica iriam os direitos daí resultantes? Para a descendência, para a ascendência, para os irmãos, para os amigos, para o "cônjuge", para o dono, para a associação que o representou em tribunal? Talvez o mais razoável fosse fazer com que revertesse para um fundo gerido pela Estado que contribuísse para a protecção da natureza. Ou pensando bem talvez nem fizesse muito sentido haver aqui responsabilidade civil por dano causados a animais, talvez fosse melhor bastarmo-nos com a responsabilidade criminal e contraordenacional, afinal o que importa é garantir os direitos dos animais mais que compensá-los pelos danos sofridos ... Mas então se é responsabilidade penal e não responsabilidade civil o que queremos é os agentes a responder pela violação da norma, perante as autoridades públicas pelo desrespeito por bens jurídicos fundamentais, e a ser punidos por isso mesmo. Em lado nenhum aqui precisamos de "direitos dos animais" para os tutelar enquanto bens jurídicos de valor inestimável para toda a comunidade.

9. Diferente de consagrar direitos é considerar os animais como coisas, sim, mas igualmente como bens a tutelar. Todos reconhecemos que os animais constituem uma boa parcela do património que chegou até nós e a preservação das espécies animais é, no contexto da preservação da natureza, uma tarefa indispensável de todos e um dos grandes desafios das próximas gerações.

10. O direito correlativo aos deveres que protegem os animais não pode deixar de caber directa ou indirectamente a seres humanos. Neste caso, a todos os seres humanos, como parte integrante do direito ao ambiente. Também adivinho aqui uma estranha ligação ao princípio da dignidade da pessoa humana, talvez, talvez e apenas talvez, porque todo o ataque inusitado à natureza seja ultima ratio um ataque a todos nós, à nossa identidade e a esse estranho laço que subtilmente liga todas as coisas vivas.

11. Do ponto de vista jurídico dar direitos a um cão é o mesmo que dar direitos a uma calhau, a um pinheiro, a uma mesinha de cabeçeira, ou ao planeta Marte. Sem capacidade para exercer direitos eles continuaram a fazer exactamente o mesmo de sempre a reger-se por outras leis ... as da natureza, tal como nós.

12. E assim chegamos a outra questão essencial. Não somos nós também animais? Animais que coram, animais que riem, animais que pensam, mas ainda assim animais. Fazemos tão parte da natureza como um rio e tão parte da vida como um carvalho ou uma borboleta. Afinal todos nós, homens e restantes animais - aqui lato senso - estamos sujeitos às mesmas regras que nos mandam nascer, crescer, reproduzir e morrer. Também nós fazemos parte deste ciclo transformativo e evolutivo em que a morte desempenha um papel fundamental. A diferença é que nós temos consciência da nossa existência no tempo e não apenas no instante, da nossa finitude e procuramos aqui um significado para as nossas curtas vidas para além do ciclo a que a nossa animalidade, ou melhor a nossa vitalidade, a nossa "bialidade", nos condena.

13. O próprio argumento da superioridade é um pau de dois bicos. Somos apenas superiores quando comparados com o nosso próprio padrão ou com base no critério de quem consegue aniquilar quem mais depressa. Sobretudo temos características diferentes que dão hoje a estes seres franzinos, sem garras ou dentes afiados a capacidade de ditar as regras e usufruir dos recursos naturais tal como os restantes animais.

14. Por que é que o Homem é responsável pela protecção de seja o que fôr? Porque tem essa capacidade. E regra geral quem deve é quem pode, porque quem não pode é que não deve de certeza.

15. Tornou-se minha convicção que todo o activismo a favor dos "direitos dos animais" resulta de um complexo de superioridade: "Nós temos o poder de escolher". É esta vontade de brincar aos deuses que nos faz falhar em reconhecer a nossa condição de seres naturais. Porque em vez de reclamarmos direitos para os animais, que em nada mudariam a sua situação, creio que seria bem mais útil reclamar para nós como direito aquilo que é deles por programação: a capacidade de gozar este mundo e os seus recursos livres de remorsos.

17 comentários:

TR disse...

subscrevo tudo com excepção do ponto 13 e 15. Mas no essencial acho que tens toda a razão.

Ary disse...

13 em 15 já não é mau...

DC disse...

Já a Pocahontas dizia ao John Smith:
"Se pensa que esta terra lhe pertence
Você tem muito ainda o que aprender
Pois cada planta pedra ou criatura
Está viva, e tem alma, é um ser."

Gostei especialmente, no post anterior da parte que dizia "Numa sociedade em que os animais ainda são vistos como seres menores que podem ser explorados e mortos com diversos fins (desde o entretenimento, à experimentação e investigação, passando pela alimentação)".
Como o Ary disse no ponto 6, também depois os animais terão o dever de não o fazer, isto é os animais depois também serão punidos(à semelhança dos seus pares humanos) por matar um animal para comer...Peço desde já à ANIMAL que me explique como eu ensino isso ao meu cão...é que por muito que eu não queira ele continua a matar os ratos e pássaros que consegue apanhar, e o mais grave é que nem sequer é para comer, porque depois limita-se a deixar os restos mortais dos pobres coitados espalhados pelo pátio...e depois quem limpa ainda sou eu!
E já agora como à luz dessa consagração de direitos dos animais vamos fazer frente a ratos,mosquitos, e tantas outras espécies que são perigosas para o ser humano?

Canoas o mercenário disse...

Acima de tudo acho que não é a atribuição de direitos aos animais, que se deve ter em conta, pois isso poderá ter efeitos bastante estranhos na ordem juridica.
Deve haver é a compreensão que existe uma "coisa" que pelas suas caracteristicas deve ter interesses legalmente protegidos, e portanto não se deve tratar assim como as outras coisas.

Canoas o mercenário disse...

Acima de tudo acho que não é a atribuição de direitos aos animais, que se deve ter em conta, pois isso poderá ter efeitos bastante estranhos na ordem juridica.
Deve haver é a compreensão que existe uma "coisa" que pelas suas caracteristicas deve ter interesses legalmente protegidos, e portanto não se deve tratar assim como as outras coisas.

Canoas o mercenário disse...

Ignorem o post... nao sei porque ficou duplicado...

So vou discordar de alguns pontos em concreto, mas nao considero que haja realmente lugar a um dto, mas sim a um interesse legalmente protegido

4
Discordo disto pois o direito destina-se tambem a seres que não sao livres de entender, e que nao sao capazes de se determinar. caso das pessoas com anomalia psiquica que ainda assim estao dentro da nossa ordem juridica

"5. Direitos são esferas de liberdade. Não faz sentido criar esferas de liberdade, dar poderes ou faculdades a quem não é capaz de as gozar."
Entao como podemos explicar o facto de interditos terem dtos?

8. BOm neste ponto tava a ser ironico. Como tu proprio disseste devemos tratar de maneira diferente situações diferentes nunca poderiamos atribuir uma indemnização ao animal, mas ao dono que corre o risco do animal. No caso de nao haver dono, entao nao haveria lugar e iria para esse tal fundo. No caso de danos provocados por esse animal sem dono... Tough luck...

"Também nós fazemos parte deste ciclo transformativo e evolutivo em que a morte desempenha um papel fundamental. A diferença é que nós temos consciência da nossa existência no tempo e não apenas no instante, da nossa finitude e procuramos aqui um significado para as nossas curtas vidas para além do ciclo a que a nossa animalidade, ou melhor a nossa vitalidade, a nossa "bialidade", nos condena." Discordo plenamente. Varios animais vivem e tem consciencia, desde Elefantes a golfinhos, a outros primatas, sabe-se ja k ha inteligencia, claro k nao a um nivel como o nosso, mas mais do k o puro instinto.

Discordo tambem do ponto 15. Não é a vontade de brincar aos deuses. Os humanos sao superiores na sociedade existente. ponto. Devido a isso tem resposabilidades para com o ecosistema. O activismo pretende um melhor convivio entre a especie animal, desenvolvendo um respeito pelos animais, devido a sua condiçao. O termo direito é visto apenas de uma forma leiga aqui, e nao de uma forma juridica.
E a verdade é que se nao houver moderação e remorso também no uso dos recursos entao o que é de nos humanos....
Não somos mais do que virus entao (a nivel comportamental) andamos de um lado para o outro multiplicamo nos, absorvemos tudo o k ha para absorver, e quando mais nada resta vamos para outro lado

Ary disse...

Canotilho,

1. A comparação das pessoas com anomalia psíquica a animais parece-me no mínimo ofensiva. Mesmo essas pertencem a uma espécie com as referidas capacidades. Mas se as elas o Direito consagra direitos é bem mais em nome da dignidade da pessoa humana do que considerando as suas capacidades.

2. A expressão coisa não tem nada de pejorativo. Há bens que são protegido pela ordem jurídica mais acerrimamente do que muitas pessoas são defendidas.

3. Consigo dar-te referências credíveis alegando que nenhum animal para além do Homem tem consciência da sua existência no tempo e nunca encontrei menções em contrário. Ter consciência da sua existência, ter consciência da morte é diferente disto. Conheces algum animal que supere os seus instintos para fazer seja o que for?

4. A alternativa aos instintos como motores da acção é constituída pelos valores e não pela razão. A razão é um instrumento incapaz de direccional um animal em direcção a um fim. Só os instintos e os valores nos indicam a onde queremos chegar, o resto só nos diz como.

5. Mas porventura os animais fazem parte de alguma "sociedade" na qual os humanos são superiores? Superiores em quê? Na adaptabilidade ao meio? Nem sempre ... Na força? De certeza que não! Na longevidade? Nem de perto nem de longe. Em número? Nunca na vida. Só se considerares que o importante para ser superior é ser parecido com o homem.

6. Remorsos e moderação são duas coisas diferentes. O nosso direito a usar os recursos naturais não deixa de colidir com interesses ambientais, com interesses relativos à qualidade de vida, com a solidariedade intergeracional. Nas últimas décadas têm já vindo a ser desenvolvidas normas que protegem os nossos direitos, que impõe essa moderação.

7. O termo direito não é visto de forma leiga mas de forma ridiculamente infantil. Basta pensar dois segundos para perceber que não estamos perante direitos.

D. disse...

"3. Consigo dar-te referências credíveis alegando que nenhum animal para além do Homem tem consciência da sua existência no tempo e nunca encontrei menções em contrário. Ter consciência da sua existência, ter consciência da morte é diferente disto. Conheces algum animal que supere os seus instintos para fazer seja o que for?"
concordo com o teu texto, mas não consigo compreender como é que podes ter certeza de uma coisa que não consegues provar...não creio que um ser humano possa afirmar com toda a certeza que um animal de outra espécie não tem consciência da existência no tempo.
além disso, existem animais que não são apenas instintos, e isso vê-se nos animais que se têm por casa, que não vivem apenas dos instintos primários que lhes são naturais ou seria impossível conviver com eles.


é óbvio que tem de se encontrar um caminho que permita proteger os animais enquanto coisas, mas também enquanto animais partes de um espaço que também lhes pertence, onde não podem ser tratados como pedras apenas porque existem outros animais que dotados de uma capacidade de usufruir do meio em volta, se servem deles estando simplesmente a marimbar-se para o sofrimento por que eles passam. e provavelmente a maioria das pessoas que fala em direito dos animais fala querendo dizer precisamente isto, não tendo o entendimento necessário para compreender a implicação de reconhecer "direitos aos animais".

Hugo disse...

qual vale mais? a aranha ou o cão?e se for um cão mesmo pequeno e uma aranha mesmo grande?

e a gula pode ser condenável? se eu comer 3 bifes de vaca em vez de 2?

:D

Tou só à espera do comentário da marta...lool!

Canoas o mercenário disse...

Um animal que tem consciencia da morte. Elefante, e sim ha estudos (basta veres o national geografic mais vezes para comprovares que se esta a evoluir no sentido de perceber que ha animais que tem consiencia e outros nao.

Sim se ha uma sociedade (a sociedade onde vivemos) e nela ha animais, ha um interesse legalmente protegido deles, de nao serem maltratados dentro de uma certa esfera, e com certos parametros
(claro que tendencialmente um animal maior teria uma esfera maior de protecção do que uma mosca.

Achas que a referencia é ofensiva? bom, eu nao sei se é tanto. ALias se se compara uma pessoa cujo cerebro esta morto a um vegetal, pois naquele momento as funcionalidades de um e outro sao essencialmente as mesmas, nao sei porque é k é assim tao descabido comparar uma pessoa com anomalia psiquica grave a um animal, dado, que sozinha nao se safa, ainda para mais quando a tratam como um animal, e reage apenas aos estimulos mais primitivos...


Claro que eu reafirmo que com isto nao estou a defender a existencia de dtos para os animais, mas meramente de uma protecção mais alargada, nomeadamente no tratamento que tem em espetaculos
Touradas e circos... era por ai que eu começaria...

Ary disse...

A prova irrefutável da falta de consciência da existência no tempo é difícil mas sem pensamento abstracto não vejo como ser possível isso e mesmo os animais com maior poder de abstracção (corvos por exemplo) não conseguem fazer contas com números bastante pequenos. A falta de uma verdadeira língua que lhes permita relacionar conceitos e expressar ideias tem aqui também um papel fundamental. Mesmo os animais com as estruturas sociais mais complexas revelam uma enorme escassez vocabular.

Os bichos de casa são bichos domesticados. Domesticação faz-se mostrando ao instinto que a melhor maneira de sobreviver é resistindo ao instinto. Nós fomos seleccionando os animais de forma a domesticá-los ... a engenharia genética já tem uns milhares de anos.
É só instinto que continua presente foi o instinto de sobrevivência que os domesticou. Se tenho mais hipóteses com estes deixa-me ficar com eles que lá fora está frio e se fujo eles ainda me matam.

Ary disse...

Eu já vi programas sobre elefantes e o facto de eles irem visitar alguns "cemitérios" mas isso é muito muito diferente de atribuir a isso um significado para a nossa vida ou ter consciência da vida e da morte.

Nós e os animais não fazemos parte de nenhum corpo social organizado, logo não fazemos parte de nenhuma sociedade, nem sequer de uma comunidade. Apenas partilhamos ecossistemas. Alguns animais domésticos poderiam eventualmente incluir-se num conceito muito muito amplo de sociedade, mas isso já era abusar bastante.

De onde a obsessão com o tamanho? Size matters?

Quanto às situações do estado vegetativo e das deficiências mentais profundas acho que devemos ter concepções diferentes daquilo que é a dignidade da pessoa humana, seja lá o que isso for. A comparação do estado vegetativo e do vegetal não pode sequer se feita do ponto de vista médico, mas também não vamos entrar por aí.

Anónimo disse...

E se definissem o conceito de consciência?

D. disse...

eu acho simplesmente muito errado dizer que isto e aquilo não se verifica nos animais... até porque cada vez mais se descobre que eles são seres bastante complexos. podem não ter blogues, mas não são como calhaus :p

p.s - a gula por carninha espero que nunca seja punida. seria um crime :p

Ary disse...

Definir consciência para estes efeitos é o que eu tenho procurado fazer.

Quanto a todo o maravilhoso mundo de coisas que nós não sabemos é isso mesmo que se passa: nós não sabemos. Não me vou pôr para aí a especular sobre as colónias em Marte que os papa-formigas possam vir a ter. Pelo que sei, pelo que compreendo, pelo que me é dado a conhecer, pela lógica das coisas, um animal sem capacidade de pensamento abstracto elaborado mal consegue aperceber-se da sua própria individualidade, quanto mais ganhar consciência da sua individualidade no tempo e da finitude da existência como certeza basilar da acção e realidade dignificadora e sacralizadora da vida .

Só uma mão cheia de espécies consegue perceber que do outro lado do espelho não está lá ninguém. Não nos deixemos enganar aqui...

Ary disse...

Quanto aos seres humanos incapazes de consciência a sua protecção não deixará de ter raízes na dignidade da pessoa humana e não nessa mesma consciência.

Se quiserem fundar direitos dos animais numa "dignidade da animalidade animal" acho conceptualmente possível mas creio que será complicado.

Anónimo disse...

Por acaso eu ia dizer o que disse o Duarte em relação aos elefantes. Mas para acrescentar algo de novo, posso dizer-vos que até hoje, está provado cientificamente que as quatro grande espécies de primatas antropóides, os golfinhos e os elefantes têm consciência de si próprios. Todos passaram no mesmo teste do espelho (em frente ao espelho com bola ou objecto na face) que é realizado a crianças, para determinar se elas se reconhecem a si próprias ou não.

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