1. Desde as passadas eleições europeias que, muito por força do que fui ouvindo e lendo, tenho pensado na "abstenção". E, entre outras considerações, às vezes pareceu-me ouvir falar de um "direito à abstenção". Só a formulação parece-me ser a ponta de um icebergue de equívocos.
Sem procurar ser muito rigoroso, o direito ao voto, para ser "direito", tem de se traduzir numa permissão, numa faculdade concedida ao seu titular: este pode ou não exercê-la, é livre de o fazer. Assim, no caso do voto obrigatório não estaríamos, na verdade, perante um direito, mas sim em face de um poder-dever ou até, eventualmente, de um dever.
Bem estamos nós com o voto facultativo (direito). Vota quem quer e em quem quer. Ou, por outro lado, abstém-se. A abstenção não é, afinal, mais do que a dimensão negativa do direito ao voto: o seu não exercício. Falar em direito à abstenção mais não parece ser mais do que vestir sobre a capa de um "direito" algo que se quer socialmente bem visto, num esforço de legitimação desta "ausência de acto".
2. Sendo juridicamente um direito, o voto assume uma diferente veste no plano "cívico", "político". Para quem quer que se reveja na comunidade politicamente organizada, com eleições periódicas, titulares de orgãos políticos democraticamente eleitos e, acima de tudo, acredite que para lá de todos os problemas que o sistema levante, é preferível a outro estruturalmente diferente (nomeadamente, não assente no voto), o voto ergue-se, naturalmente, como um dever. Dever esse que não de natureza jurídica: não tem a ameaça da sanção sobre o seu não exercício. E essa é a sua grande força, quando exercido.
3. Assim, se aplaudo a natureza de "direito" do voto, não tenho pudor algum em condenar, em confronto de ideias, a abstenção. Se ali se trata de saber até onde o direito deve intervir (ou seja, se o voto deve ou não ser obrigatória), aqui trata-se de uma discussão ideológica. E, aí, havendo lealdade argumentativa, não há argumentos formais como "não sou obrigado a votar". Trata-se de discutir a própria bondade do voto, a sua necessidade.
4. A luta pelo voto é acima de tudo, pois, uma luta cultural, no plano do confronto de ideias (aquilo que pouco se aborda, afinal, procurando-se atribuir "significados" à abstenção). De nada servirá haver eleições periódicas, órgãos democraticamente eleitos, ..., quando se perca o sentido do relevo e importância da eleição. Aí, a organização de eleições de x em x anos será de um formalismo inconsequente.
Que não haja medo em afirmar a importância do voto, em condenar a abstenção. Uma questão que está antes ou, melhor, se afigura como o substrato do direito jurídico de voto. Onde se perca o substrato, já não ha razão para o resto. E que acabem os "argumentos" (em processo civil seriam excepções dilatórias) de que o voto não é obrigatório.
Batalhemos pela democracia.
6 comentários:
o problema tiago, é que para 60% das pessoas já é um formalismo inconsequente. talvez até mais, quantos não terão ido às urnas para cumprir calendário? porque são umas eleições, cujo resultado lhes vai ser completamente indiferente porque não sentem a ligação entre o resultado do seu voto e aquilo que as levou a votar. óbvio que penso que todos deveríamos votar, que todos deviam intervir tão activamente quanto possível nas políticas que lhes dizem respeito. e concordo contigo: a abstenção não é um direito. mas para muita gente, e não é preciso ir longe, é marcar posição. um boicote. talvez haja melhores maneiras de o fazer, é discutível, mas cada um luta com o que tem à mão não é?
A mim pessoalmente assusta-me que 60% da população portuguesa se esteja a marimbar para o que é que faz ou deixa de fazer um deputado europeu, quando o Parlamento Europeu tem o peso legislativo que todos lhe conhecemos. A abstenção em si, não a falta de votos.
Grande Abraço
Acho que tocaste no ponto exacto. Assumamos que para muita gente a abstenção é marcar uma posição. Certíssimo. E, em seguida, discutamos isso. Discutamos a democracia, o valor do voto. E o que digo é que o exercício do direito de voto é um corolário lógico que decorre de acreditar na democracia. A mim parece-me que o problema central da abstenção é a falta de fé na democracia. Não acredito, francamente, que quem se abstenha (refiro-me à generalidade, não a casos particulares) esteja preocupado em marcar uma posição. Parece-me que, está, isso sim, completamente alheado, descrente. Como aprendemos em economia, que o proveito do voto não cobre o custo de ir às urnas.
A questão tem raízes bem fundas. Onde quis chegar é que o problema central é cultural. A abstenção, pela sua natureza, é a opção por não exercer o voto. E, por isso, acreditando na democracia, não se deverá fechar o olhar perante algo que a faz perigar que, afinal, é o reflexo de como a mesma não está tão sedimentada quanto isso. Ser coniventes com a abstenção (plano ideológico, não jurídico) pode ajudar a frutificar as sementes que, brotando, façam perigar a democracia.
E o problema, se também é nosso (os tais 60% que referem), tem projecção europeia. Como a esquerda-direita estar a subir.
Abraço!
O meu texto parece contraditório, mas não é.
Eu digo: assumamos que muita gente quer marcar posição.
Quando, seguidamente, digo que não acredito nisso, já estou a atacar a premissa.
o argumento mais repetido que ouvi por parte de pessoas que acreditam na abstenção, foi o facto de não acreditarem neste sistema. logo, como não crentes, não iriam votar e usar um instrumento de um sistema que condenam. mas este pensamento deve ser recorrente em apenas 0.2% das pessoas que não votaram, todas as outras estão simplesmente desligadas de seja o que for.
concordo mesmo com o teu texto :)
so uma precisão a incluir no esquema do raciocínio: não haver direito a abstenção. e se virmos a abstenção como uma omissão; e extrapolando para outros casos em que há um direito de omissão ao sopesarmos outros interesses e direitos a salvaguardar?
So ha' direito a omissao havendo dever de voto. E juridicamente o voto e' um direito...
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